sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Crônica (03)

DUAS ESTRADAS ACADÊMICAS

Saber preparar profissionais capazes de transformar o aluno de nível médio em um usuário competente da linguagem é um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa nos cursos de Letras. Ser um usuário competente da linguagem não é apenas ser capaz de ler criticamente qualquer tipo de texto, mas também ter a capacidade de produzir textos dotados de tal significado e estrutura que seu eventual leitor os receba de modo natural, isto é, concentrando-se na mensagem transmitida, embora eventualmente possa mesmo deter-se sobre alguma construção ou escolha de palavras que lhe pareça passível de uma reflexão metalinguística. Todavia, ser um usuário competente da linguagem é igualmente saber explicar como ela funciona, e isto ultrapassa os limites mais específicos das atividades didático-pedagógicas voltadas para as aulas de redação e alcança um campo dito “minado”, qual seja a tarefa de apresentar tópicos de teoria gramatical direcionados para que se possa atingir aquele a que chamo, no início deste parágrafo, um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa – e agora não apenas nos cursos de Letras, mas em todas as salas de aula onde atue um professor de Português.

Vislumbro, neste ponto, duas estradas paralelas que levam ao mesmo destino, a uma cidade imaginária (Éden?), habitada por cidadãos conscientes, expressivos e críticos, construtores de sua cidadania plena a partir do direito que lhes foi assegurado de ter o domínio de sua própria língua nacional, com a autonomia e a faculdade de distinguir os usos que melhor lhes aprouverem.

Os futuros profissionais da área de Letras recebem um bilhete ao ingressar no curso superior, iniciam sua viagem e, durante todo o trajeto, se abastecem dos princípios norteadores de sua pretendida opção de ensinar Português. Na estrada que percorrem, param em oficinas sintagmáticas e paradigmáticas, veem outdoors estruturalistas e transformacionais, lojas funcionalistas de peças discursivas e até um minishopping com coesas e coerentes butiques pragmáticas. É uma rodovia razoavelmente conservada, nem sempre bem sinalizada, com pedágios e postos de fiscalização comandados por professores de Língua Portuguesa e de Linguística, vários entroncamentos que levam para outros destinos e placas indicativas de retorno a cada mil metros. Nem sempre os que conseguem terminar a jornada acham a cidade que procuram e muitos acabam chegando à conclusão de que talvez tivesse sido melhor consultar um mapa antes de começar o percurso.

Diz a lenda da região que vários deles procuram ajuda numa pequena mercearia de beira de estrada, que também serve de posto de informações. Lá, se dão conta de que, para chegar à cidade, ainda será preciso seguir pela outra estrada, a que chamam vicinal... Ficam sabendo inclusive que, ao longo da rodovia pela qual vieram, eles passaram por vários acessos a essa outra estrada, embora isso não lhes garantisse chegar ao lugar pretendido. Perguntam onde estão e se surpreendem quando lhes dizem que aquele lugarejo tem o nome de Burrosnágua – neologismo que teria sido criado em homenagem a seus fundadores, um casal analfabeto beberrão que ali se estabeleceu no início da década de setenta.

Há os que fixam residência nesse pequeno povoado, mas há também os que partem, enfim, em direção àquela estradinha secundária, obcecados em alcançar Éden. Estes ficam se indagando por que, quando lhes falavam dela, diziam: - Ah, sim. É uma estrada que já teve a sua importância, mas que, hoje em dia, está meio posta de lado. Falam que é mal assombrada... Até seu nome é estranho, Estrada do Sermão...

Nessa outra estrada há muitas curvas, pistas estreitas, poucos acostamentos, mas o asfalto é liso e são bem visíveis as faixas amarelas que indicam os pontos onde é permitida a ultrapassagem. As lojinhas que a margeiam vendem lembranças estilísticas e enfeites semântico-expressivos. Uma delas é especializada em discutíveis suvenires ortográficos e curiosos berrantes sintáticos de difícil colocação. Os postos de fiscalização parecem abandonados. Alguns dão a impressão de terem sido alvo de pichadores rodoviários. Na subida da serra, há uma fonte de água transparente e alguns vendedores de frutas da estação. Há várias placas que apontam em direção à rodovia principal, todas elas com um lembrete muito sugestivo: “Cuidado ao adentrar!”.

Retomo, então, o prumo desta prosa e busco nessa Estrada do Sermão o tema da correção gramatical, que é, para o profissional da área de Letras, a um só tempo, instigante e paradoxal. Digo desafiador, porque me reporto à inevitável cobrança de conhecimento acerca das noções de “certo” e “errado” de que é alvo todo especialista em questões de língua. E digo contraditório, pois transfiro para essa sua “decisão soberana” todo o drama de um juiz que, a cada instante, se vê enredado pelas tranças de regras e de intransigências legais acerca das adequações e inadequações desta ou daquela construção.

A norma culta é um enigma. Onde se esconde essa criatura tão decantada em enunciados de provas, programas de concursos e orientações para monografias? Será que ela ainda mora naquelas mesmas gramáticas conceituadas que há uma ou duas dezenas de anos vêm sendo acusadas de ranços retrógrados de uma língua que não se usa mais? Observo que, na verdade, essa tal norma culta já nem representa mais a sociedade culta porque esta já não fala nem escreve em língua culta.

Lembro também que, ao longo de sua formação, o futuro profissional da área de Letras terá de comprovar na prática que é possuidor de duas qualidades: detém o conhecimento crítico da teoria gramatical e exercita plena e satisfatoriamente esse conhecimento na produção de seus próprios textos acadêmicos, algo que é concreto e que precisa ser enfrentado, a partir de uma preocupação autoritária e conservadora.

Friso, ademais, a atenção que se deve dar aos registros normalmente inseridos em trabalhos de graduação e de pós-graduação: citações, ilustrações, notas bibliográficas e pessoais, etc. Costuma-se, para estes itens, seguir uma série de outras determinações. Muitas delas tomam, às vezes, ares de paranoia formal e, por esse motivo, se juntam harmoniosamente aos ataques psicóticos naturais daquelas regras obsessivas impostas pelos detentores da presumida sabedoria científica. Menos mal que já é possível constatar que, atualmente, a padronização dos trabalhos acadêmicos está merecendo um tratamento mais pedagógico do que carcerário, o que garante alguma tranquilidade para o estudante-autor.

Porém acrescento que, se no nível médio a gramática não pode mesmo ser enfocada unicamente como um estudo metalinguístico, exceto nas ocasiões explícitas de necessidade, o mesmo não se pode dizer em relação ao seu estudo nos cursos de Letras. Neste nível, é vital dar ao futuro professor de Português a ferramenta de sua atividade profissional, sob pena de se estar colocando no mercado de trabalho um especialista que não domina sua especialidade. Alguém que corrigirá redações sem saber fazê-las ou que cobrará regras que não explica e muito menos entende.

E, por fim, se este texto, que se aproxima de seu desfecho, puder servir para alguma coisa, que seja pelo menos para exemplificar uma modalidade de expressão dotada de “estruturas bem formadas”, adequadas gramaticalmente aos seus objetivos – caso explícito de metalinguagem, mesmo que artesanal e de valor literário discutível...

Para chegar a Éden, falta juntar as duas estradas, pavimentá-las por igual e percorrer o trajeto com a velha certeza de que a sinalização, as lojas e oficinas, os postos de serviço e de fiscalização constituem um patrimônio comum. Só assim Burrosnágua poderá desaparecer do mapa.

Fiquem bem!

Fonte: extraído, com adaptações, de A Produção de Monografias (Dialogarts, 1998).