quinta-feira, 2 de julho de 2009

Acadêmico (02)

TERMINOLOGIA E ENSINO

Ao dar aula no ensino fundamental e médio, o professor se depara com muitos desafios, e o principal deles é o desafio de seu sonho. Por que dar aula – e logo de Língua Portuguesa? Dizem que temos vocação para sofredores. Pode ser. Na realidade do trabalho docente, entramos em sala para reencontrar nossas razões, cada um a seu jeito, assim como os alunos que olham para o professor e imaginam como será aquele convívio que durará dois semestres letivos, às vezes mais.

O que é uma aula de Língua Portuguesa? Basicamente deveria ser um prolongamento do que se passa no mundo real, pois a língua que usamos é o nosso chão, somatopsicopneumático... Com a diferença de que o fato de ser uma disciplina integrante do currículo escolar a torna, naquele ambiente, muito mais propícia à autorreflexividade do que no espaço cotidiano extraclasse.

Pensar a língua portuguesa para se pensar em língua portuguesa, transitiva e intransitivamente, nas perífrases e nas paráfrases, nos paradoxos da vida. Onde está a língua que o professor apresenta nas suas aulas? De onde vem o que vai mostrar para o aluno? Vem de uma lista, de uma tabela, de um glossário, de um receituário? Ou vem do jornal, da televisão, do futebol, do cinema, dos bares, da música e da literatura? Vem do palavrão e do elogio? Da declaração de amor ou da declaração de renda? Ó mulher rendeira essa língua portuguesa! Por que só ensinar a fazer renda? Bom mesmo é namorar.

Todo o prazer do estudo da Língua Portuguesa faz parte do passado de cada professor de Língua Portuguesa. Não imagino que alguém escolheu ser professor dessa disciplina sem gostar dela. O que houve com a vocação que levou cada professor de Língua Portuguesa a ser (sê-lo – vá lá!)? O tempo foi calando o seu prazer? Programas engessados, salários indignos, condições precárias, superlotação, desprestígio... Sua Pasárgada da sala de aula ficou sem a aventura da existência...

Estudar a língua portuguesa com os alunos não dói. Faz pensar – exercício que precisa de treinamento, hábito, vontade... Pensar metalinguisticamente, porque a descoberta do entendimento das coisas da língua é alimento do espírito, é inspiração para outras reflexões e descobertas, é abertura para dar e receber novas informações. Esse estudo muito bem podia ficar assim mesmo: cada dia um texto, uma história, uma notícia, uma data festiva ou triste, uma visita. Tudo nos serve de desculpa para falar da língua. A propaganda diz que aquela cerveja desce redondo? Serve. O gol do Flamengo foi um golaço? Serve. O nome do filme é “A Ordem da Fênix”? Pode trazer que serve. Quem está na chuva é pra se molhar? Serve. E se for pra se queimar, como dizia o semifilósofo Vicente Matheus? Também serve. Sei cantar o hino do Colégio? O meu colégio não tem hino? Vamos fazer um hino pro nosso Colégio, ora! É época de Vestibular ou de ENEM e temos um formulário pra preencher? Vamos a ele.

Está tudo em português, mas, mesmo que não estivesse (porque o shopping center, o e-mail e a pizza apareceram diante de nós para se aportuguesarem), não faria mal nenhum. Cada um de nossos alunos tem o que dizer sobre todas essas coisas, pois fazem parte de suas vidas corinthianas, salgueirenses, agrícolas ou litorâneas. Um comentário aqui, um encaminhamento ali, vamos indo pelas beiradas em busca da confraternização linguístico-gramatical, sem traumas nem rancores.

Tudo isso é gramática pura, em funcionamento. E tudo tem nome, porque afinal de contas se os alunos têm nome, se o professor tem nome e a Escola tem nome, porque o coitado do artigo definido só vai se chamar “azinho” e o acento circunflexo “chapeuzinho”? Mas não é preciso uma nomenclatura gramatical sofisticada. Só se pede que ela seja apenas uma. Como o ser humano, incompleta, imperfeita, carecendo de retoques e de carinhos – e é só um instrumento.

O maior trabalho é pegar os retalhos todos tratados em tantas aulas e fazer uma bela colcha, um painel bonito e expressivo que se confirma na hora em que o aluno lê um texto (e gosta de ver que sabe ler), na hora em que o aluno escreve um texto (e gosta de ler o que escreveu). E até na hora em que ele faz uma prova, dessas bonitonas que o Governo aplica para dizer que o mérito é dele (mas só quando a coisa melhora). Desculpe! O mérito é da aula que o professor decidiu como ministrar.

A Nomenclatura Gramatical Brasileira feita em 1959 completa cinquenta anos. Em Portugal, onde havia uma nomenclatura oficial nascida em 1967, já se fez outra, rebatizada, pomposa, com bibliografia em francês, inglês e espanhol. E o Brasil? Vamos continuar convivendo com uma neoparafernália de terminologias? Qual a parte que nos cabe nessa Torre de Babel?

Penso nas pessoas, na língua, na gramática, nos nomes – tijolo com tijolo, pau, pedra... caminho.

Fonte: Prefácio de "Nomenclatura Gramatical Brasileira: cinquenta anos depois": Ed. Parábola, 2009.