sábado, 20 de novembro de 2010

Entrevista (01)


AO JORNAL PONTO FINAL, de Macau (China)

“Ortografia não é língua portuguesa”

Claudio Cezar Henriques, filólogo e escritor brasileiro, está em Macau para uma palestra sobre a reforma ortográfica, hoje na UMAC. Em entrevista, releva a “importância política” do acordo e vinca o interesse comum em que haja uma única ortografia. Que não significa uma única forma de usar a língua.

Hélder Beja [helderbeja.pontofinal@gmail.com]

O PONTO FINAL sentou o idioma à mesa para, entre português de Portugal e português do Brasil, entender outras nuances do novo acordo ortográfico. A companhia foi a de Claudio Cezar Henriques, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialista da língua, autor de vários livros – entre eles “A Nova Ortografia”. Hoje, pelas 17h30 na sala HG03, o membro da Academia Brasileira de Filologia que mantém o blogue blogclaudiocezarhenriques.blogspot.com estará na Universidade de Macau para a palestra “Unificação da Ortografia da Língua Portuguesa: uma questão de Política Linguística e de Identidade”, na companhia da professora Ana Lucia de Souza Henriques. E para defender que “a ortografia é uma decisão política, administrativa, e não interfere na língua”.

- Como é que o Brasil encarou este processo de mudança da ortografia?
Claudio Cezar Henriques – No primeiro dia de entrada em vigor da lei [1 de Janeiro] os jornais brasileiros já estavam com a nova ortografia em funcionamento. Como a mudança é pouca em termos percentuais, é muito simples para nós. Houve uma pequena rejeição, até participei em alguns debates com jornalistas, com escritores… Há um sentimento meio romântico, um apego a uma grafia com trema, com acento circunflexo em certas palavras – coisas que tínhamos no Brasil e não eram praticadas em Portugal. Mas isso não é uma questão técnica, é uma questão sentimental. A coisa aconteceu normalmente, o povo aceitou, não houve rejeição do povo. Houve alguns intelectuais reclamando que achavam que isso era uma interferência, que a reforma não tinha sido debatida suficientemente… Não foi debatida suficientemente porque as pessoas não quiseram debater. De repente descobrem que a lei vai entrar em funcionamento e aí se lembram que gostariam de ter debatido. Hoje em dia, nas escolas, media, televisão, tudo usa a nova norma.

- Os ecos de alguma resistência em Portugal ao acordo chegaram ao Brasil?
C.C.H. – Apareceram notícias de que houve em Portugal mais resistência, mas que essa resistência também tende a ser superada. O prazo para a implantação definitiva em Portugal é maior, houve um manifesto, um abaixo-assinado para a assembleia, mas que também não foi acolhido. Não há como haver o retorno para a divergência ortográfica, até porque é do interesse dos dois governos. O ministro da Cultura de Portugal e o ministro da Cultura do Brasil já pleitearam à ONU que o português seja uma língua oficial, já que agora tem uma ortografia só. Porque antes não era possível, a própria Comunidade dos Países de Língua Portuguesa fazia dois textos – um no português brasileiro, outro no português europeu. A minha pergunta é sempre esta: se uma duplicidade ortográfica fosse uma coisa boa, o inglês teria quantas ortografias? E o espanhol? São 22 países que usam o espanhol como língua oficial e só têm uma ortografia. Porque é que o português tinha duas ortografias? A gente que estuda a língua portuguesa sabe que a história da ortografia da língua portuguesa é sempre uma história de conflitos, de alguém que concorda com outro e depois, como dizemos no Brasil, rói a corda, rompe. A história dos acordos ortográficos da língua portuguesa é muito pitoresca, porque são todos acordos que viram desacordos – e o receio era que este também ficasse assim. Mas, pelo visto, já que agora temos oito países na comunidade, é do interesse de todos que tenhamos essa única ortografia.

- Falava do interesse para os governos. Passa por essa facilidade do português em entrar como língua de instituições internacionais?
C.C.H. – Este é o principal motivo para que a gente acredite nesta unificação.

- E aí já entramos no campo da política linguística, de que falará na palestra.
C.C.H. – Na palestra sempre focalizo em primeiro lugar a relevância política do acordo ortográfico. Como especialista em língua portuguesa, tenho uma série de críticas à parte técnica do acordo ortográfico, mas coloco isso sempre em segundo plano. Em primeiro plano está a importância de haver uma ortografia unificada. Prefiro uma má ortografia unificada a duas ortografias que também eram más. Aliás, não existe uma ortografia perfeita. Este acordo tem alguns problemas, que também vou mostrar amanhã.

- Mas nada disso, a seu ver, se sobrepõe à vantagem de haver uma ortografia comum.
C.C.H. – Exacto. Essa parte é sempre muito difícil. No Brasil, por exemplo, não pronunciamos o ‘l’ no final das sílabas como em Portugal se pronuncia. Em Portugal fala-se ‘Portugal’, ‘Brasil’, e no Brasil fala-se ‘Brasiu’, ‘Portugau’. E aí, que fazer? Vamos escrever com ‘u’ no Brasil e com ‘l’ em Portugal? Não vai dar certo. Temos que continuar escrevendo com ‘l’, porque há zonas do Brasil onde se diz o ‘l’, como no Rio Grande do Sul. Quando se escolhe uma grafia, toma-se em consideração a pronúncia prestigiada. Nesse ponto o acordo ortográfico foi muito feliz, porque todas as vezes em que existe divergência de pronúncia sobretudo entre Portugal e Brasil, sempre que uma pronúncia é prestigiada num dos países e não é no outro, essa grafia é válida. Por exemplo, não faz sentido dizermos no Brasil ‘aspecto’ e em Portugal se dizer ‘aspeto’, e alguém dizer que vai ser ‘aspecto’. Se a pronúncia é prestigiada, as duas grafias são correctas. Então a gente vai conviver com uma flutuação ortográfica em casos como esse, o que acho que foi uma decisão correcta. ‘Facto’ será também uma palavra de dupla grafia: é correcto ‘facto’ e ‘fato’. Mas, por exemplo, não faz sentido alguém escrever a palavra ‘direcção’ com ‘c’ e ‘ç’. Em Portugal ninguém fala ‘direcção’. E essa foi uma resistência que aconteceu em Portugal, que é aquela mesma resistência romântica que eu estava dizendo sobre o Brasil. Nesse ponto o acordo foi perfeito: se essa consoante não é pronunciada em nenhuma das comunidades que usa a língua portuguesa, essa consoante desaparece. E foi nesse ponto que o percentual de mudanças para os portugueses superou o percentual de mudanças para o Brasil. No Brasil houve mudança no trema, na perda do acento agudo em alguns ditongos, a perda do acento circunflexo em alguns hiatos e o hífen.

- A percentagem de mudanças na norma de Portugal é maior. É correcto dizer-se que este acordo aproxima mais a ortografia da norma que se pratica no Brasil?
C.C.H. – Essa crítica também não procede, porque a norma que se pratica no Brasil está preservada, mas a norma que se pratica em Portugal também. Aliás, está mais preservada que no Brasil. O caso das consoantes mudas acaba por virar até uma piada. Se a consoante é muda, para que é que está escrita? Porque é que se escreve uma consoante que é muda? Ela podia ser muda, surda e cega, completamente apagada da grafia. Mas veja só: a norma brasileira está abrindo mão da pronúncia de ditongos abertos. ‘Idéia’ não é igual a ‘aldeia’. Nós nitidamente pronunciamos ‘éi’ e ‘ei’. Para os portugueses, esse acento é desnecessário, mas para os brasileiros um acento agudo indica ‘é’ e a ausência de acento agudo indica ‘ê’. Nós vamos ter que nos arranjar com isso. Tínhamos de aproximar as duas ortografias e temos duas realidades fonéticas muito diferentes. Se formos levar em consideração a realidade fonética, não vamos fazer acordo ortográfico nunca, vamos voltar ao tempo do português arcaico, onde cada um escrevia do jeito que queria. É preciso ceder: o Brasil cede um pouco, Portugal cede um pouco e ganhamos todos com o português conquistando mais espaço no mundo. Essa é a grande meta – que a língua portuguesa se fixe como uma língua oficial, aceite nos organismos internacionais e que a gente possa ter portugueses ou pessoas de outros países de língua portuguesa indo para o Brasil, ou brasileiros indo para Portugal, e todos convivendo com isso.

- Outro lugar comum desta discussão sobre o acordo é dizer-se que a simplificação empobrece a ortografia e, logo, o idioma.
C.C.H. – Não penso assim. E isso foi uma coisa em que houve muita confusão, sobretudo dos não especialistas em língua – jornalistas, escritores. Um membro da Academia Brasileira de Letras deu um pronunciamento num jornal dizendo que era contra o acordo e que não ia seguir, que a editora fizesse o que quisesse com os textos dele. É um depoimento completamente louco, diria até meio irresponsável. Mas justamente por quê? Estava confundindo língua com ortografia. Ortografia não é língua portuguesa. Ortografia não faz parte da gramática. Ensina-se ortografia na aula de português por mera proximidade: cabe ao professor de português ensinar a escrever, mas aquilo que ele ensina pode ser determinado por alguém. No dia que alguém der ordem para que se volte a escrever “ph” em vez de “f”, temos de fazer o quê? Temos de obedecer. A ortografia é uma decisão política, administrativa, e não interfere na língua. A língua não mudou, eu continuo dizendo as mesmas palavras. Imaginemos que nós não escrevêssemos, que só falássemos. A língua mudou porque houve uma reforma ortográfica? Então, essa questão de empobrecer a língua é justamente de confundir ortografia com língua. Vou continuar precisando saber o significado que determinada expressão tem em Portugal e que não é usada no Brasil. Se pegar um livro do Pepetela, vou precisar reconhecer o vocabulário da região dele. O Mia Couto escreve e eu não sei o nome de algumas coisas de Moçambique. A língua não mudou, continuamos com essa multifacetada expressão do português, que é uma língua riquíssima. A reforma, apesar de ter simplificado, não tem a ver com o empobrecimento da língua. O empobrecimento da língua se dá quando essa língua não é valorizada pela própria sociedade que a pratica. Todos nós temos uma grande responsabilidade: Portugal porque é a pátria onde tudo começou, e o Brasil pelo contingente populacional que tem.

- Também em Macau?
C.C.H. – Se Portugal e o Brasil não investirem em Macau no ensino de língua portuguesa, certamente a língua portuguesa vai-se deteriorar aqui. É lógico que há muitos factores que interferem nisso, não é apenas a acção política de um Governo que vai impedir isso, mas pode retardar e, quem sabe, mudar o quadro.

- Macau está numa posição curiosa. O português é língua oficial mas Macau não participou neste processo da reforma ortográfica. Parece haver uma certa vontade de não adoptar a nova norma. Por outro lado, há quem perceba que, como centro de ensino do português, não deve retardar essa introdução da nova norma. É um caso especial, este?
C.C.H. – Tem razão, a questão aqui é que as pessoas que querem estudar o português têm uma finalidade para isso. Hoje [ontem] perguntei para duas meninas: por que é que vocês foram estudar português? Então elas disseram que queriam estudar uma língua estrangeira. Esse sentimento de estudar uma língua estrangeira… Mas o português para todos os efeitos não é tanto assim uma língua estrangeira para o povo de Macau, até 1999 era administrado por Portugal. Acontece que por outro ponto de vista é uma língua estrangeira porque as pessoas daqui não a falam. Está tudo escrito em português, no aeroporto, nas ruas, nas placas, nos hotéis, mas se falarmos com algum recepcionista em português ele não vai entender. Então a segunda língua dele certamente é o inglês. Isto é uma questão que a comunidade de Macau precisa de avaliar. A importância da língua portuguesa para o povo de Macau é algo que compete à cidade decidir o que é que significa. Para nós é muito cómodo dizer que é importante estudar português, o Brasil é um grande país, Portugal tem uma História maravilhosa, mas e para eles? Talvez se a presença brasileira ou portuguesa aqui fosse maior, mas eu não sei… não conheço.

- Ainda assim, como acha que se pode resolver a questão?
C.C.H. – Em Macau, como qualquer local do mundo onde se use a língua portuguesa, como Malaca, Goa, ou mesmo nos países onde há comunidades portuguesas, como o Canadá e os Estados Unidos, o que é que vai acontecer com o português? Vai ficar com uma ortografia só e todos terão de escrever nessa ortografia. O que acontece com o espanhol. Então, onde houver algum grupo usando a língua portuguesa terão de se submeter. Acho que, politicamente, o que seria conveniente seria que alguém de Macau, uma autoridade, alguém ligado ao ensino do português aqui, fosse convidado não necessariamente para debater – porque na verdade não há nada para debater, a coisa já está feita – mas a título de prestígio, porque é prestigiar as comunidades. Embora ainda seja língua oficial percebe-se que está a acontecer esta perda, este afastamento. O que a gente lê nos livros e nas notícias é que aqui o português está sendo suplantado pelo inglês. Enfim, eu acho que essa questão acaba sendo resolvida dessa forma. Há um acordo, é oficial, vai passar o tempo e aí as coisas vão-se acomodar. E para todos os efeitos, na comunidade internacional, o português hoje tem uma ortografia só. Nem que seja só pelo aspecto psicológico. Na prática isso não está acontecendo completamente mas a gente sabe que é para lá que nos estamos encaminhando.



Fonte: Jornal PONTO FINAL, 21 de setembro de 2010 (Macau - China)