sábado, 30 de julho de 2011

Crônica (08)

A SINTAXE DESIMPORTANTE
[por Pércio Faria Rios, cronista convidado - aluno do terceiro período do Instituto de Letras da UERJ]

Estava lendo Manoel de Barros, dia desses, numa tentativa semidesesperada de encontrar um tema possível para esta crônica sobre sintaxe. Fracassei. Fracassei com o Manoel, como fracassei com o Elomar, como fracassei com os palavrões; e descobri algo importante: não sou do mundo da sintaxe. Na poesia de Manoel de Barros não via sintaxe, só poesia; na música de Elomar só via música e beleza em sua linguagem dialetal sertaneza; quando pensei em palavrões, só conseguia relembrar a emoção de uma palavra “baixa” soltada numa hora alta, de extrema paixão. Senti-me parte das desimportâncias deste mundo, numa espécie de abatimento pitadinho de satisfação. Contudo, continuei lendo o poeta pantaneiro até que me veio o verso: As coisas que não levam a nada têm grande importância.O início, talvez, do meu desfracasso.

Pensei, imediatamente, nos tão desprezados termos acessórios da oração, sem tirar, no entanto, a poesia da cabeça. Esses termos são considerados dispensáveis no contexto oracional; são, em contrapartida, imprescindíveis para o entendimento de certos enunciados. Pensei: um momento! Poesia não se entende. Manoel concordou mais ou menos comigo. Para entender nós temos dois caminhos, disse ele: o da sensibilidade, que é o entendimento do corpo, e o da inteligência, que é o entendimento do espírito. Dei um ok, esperando pelo complemento do poeta, que logo veio: eu escrevo com o corpo. Por trás dessa fala do pantaneiro, entretanto, surgiu-me uma certa visão de uma certa dança: corpo e espírito, num bolero. Manoel escreve com o corpo. Só que não poderia dizer isso sem o auxílio do adjunto adverbial de instrumento, com o corpo. O poeta escreve, mas isso não é poesia. O poeta escreve com o corpo, e isso sim é poesia! Corpo e espírito: poesia e sintaxe!

O adjunto adverbial é esse termo acessório, dispensável, mas que introduz na oração uma circunstância, referindo-se geralmente ao verbo. É indispensável à poesia, que dispensa tudo, menos as coisas dispensáveis deste mundo.

Manoel de Barros não para por aí sua defesa dos oprimidos pela importância: as coisas que não pretendem: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia. O poeta continua contando com as desimportâncias da linguagem para defender as desimportâncias da poesia: não poderia ele, sem o aposto pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, outro termo acessório da oração, fazer uma defesa tão bela. O aposto se relaciona com o termo anterior. Neste caso, o aposto que Manoel ab-usou é enumerativo, vem depois de dois pontos, para explicitar ou exemplificar qualquer coisa.

A poesia encontra-se, de fato, na periferia de todas as coisas, fora do núcleo, das obrigatoriedades. Diria o professor de Português: ah, é como o adjunto adnominal! Manoel mudaria de assunto. As crianças escutam a cor dos passarinhos, diria ele. O professor replicaria: pois é, Manoel, dos passarinhos é adjunto adnominal. Está fora do núcleo do objeto direto, a cor, e indica posse.

Pensei que a poesia delirante da palavra não se desse bem com a sintaxe e me enganei. Manoel de Barros me provou o contrário: os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2011.