quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Crônica (09)

DUAS CRONISTAS CONVIDADAS

Mais duas crônicas linguísticas para os leitores do blogue. São textos produzidos por duas alunas do quarto período de Língua Portuguesa da UERJ (turma de 2010-2 do Instituto de Letras). O tema era MORFOLOGIA do português, assunto de nosso curso.

A VIDA COM OS ADJETIVOS (por Vanessa Gomes Teixeira)

Acabo de inventar um movimento novo de libertação. Resolvi libertar a classe de palavras mais injustiçada da língua portuguesa, os adjetivos. Não apenas por esse motivo, mas também porque eles são os seres mais bipolares da nossa gramática.

Os adjetivos são tão bipolares que, se não modificarem o substantivo, mudam de classe, como no caso: “Esse homem está doente” e “O doente foi atendido pelo médico”. Na primeira frase, a palavra “doente” funciona como adjetivo, porque modifica o substantivo “homem”; na segunda, como substantivo, pois não muda ninguém, apenas designa o ser sobre o qual queremos falar. Outro exemplo são as frases “O menino rápido comeu seu lanche” e “O menino comeu rápido seu lanche”. Na primeira, “rápido” é adjetivo porque atribui uma característica ao menino citado; já na segunda frase, a palavra desempenha o papel de advérbio porque, nessa sentença, “rápido” não está se relacionando com o substantivo “menino” e sim expressando o modo como ele comeu. O adjetivo muda tanto que, além de mudar o substantivo, ele pode modificar seu próprio sentido – dependendo da posição que ocupa: a expressão “uma menina pobre”, por exemplo, tem o sentido diferente da expressão “uma pobre menina”, mesmo sendo ambas compostas pelas mesmas palavras.

Segundo as gramáticas tradicionais, a definição de adjetivo é “palavra que modifica o substantivo, atribuindo-lhe uma característica”. Vendo dessa forma, ele parece apenas um figurante, que serve de apoio para o protagonista que “designa os seres em geral”. Mas será que ele é um somente um acessório?

O parceiro do adjetivo é o substantivo, classe que tem sua própria independência. Substantivos têm seu sentido completo, adjetivos precisam dos nomes com que irão se relacionar. Porém, não são apenas enfeites, pois afinal são os termos que dão a personalidade de tudo que existe no mundo.

Se a primeira coisa que fizemos foi nomear as coisas, a segunda, com certeza, foi caracterizá-las. Se os substantivos nos permitem categorizar e organizar o mundo, os adjetivos nos permitem especificar esse mundo no qual vivemos. Eles também nos possibilitam esclarecer qual a posição em que nos colocamos ao construir uma sentença e qual é a nossa intenção ao expressá-la. Falar “A menina viu o menino” é bem diferente de “A menina insensível viu o menino triste”. Isso ocorre porque os adjetivos nos permitem demonstrar qual é a nossa visão ao analisarmos uma pessoa ou situação.

Outro recurso que também nos ajuda no processo de posicionamento é a capacidade que essa classe de palavras tem de comparar dois seres ou ressaltar uma qualidade: assim como o comparativo dos substantivos, o superlativo dos adjetivos nos ajuda a individualizar o nome, apresentando características que somente eles possuem ou que eles têm em maior quantidade do que resto do grupo.

De modo geral, os adjetivos não qualificam apenas os nomes, eles transformam a regra em exceção, ou seja, transformam um simples “mais um” em algo único no mundo. Isso porque todos somos categorizados como objetos ou seres, homens ou animais, machos ou fêmeas; mas cada um de nós possui características que nos diferenciam do resto, aquelas que ninguém mais tem e que nos fazem ser exatamente quem somos.

LÍNGUA DINÂMICA (por Claudia Regina de Oliveira)

O perfil das provas de língua portuguesa, seja nos vestibulares, seja nos concursos públicos, vem mudando nos últimos anos. A grande preocupação de outrora era a avaliação dos conhecimentos gramaticais com comandos mais diretos como "Identifique o processo de formação de palavras dos itens abaixo", por exemplo. Atualmente percebemos que há mais questões que integram vários assuntos, podendo uma pergunta de morfologia depender do conhecimento de semântica do concursado. É nesse momento que a percepção da própria língua, por parte do candidato, fará toda a diferença para o seu sucesso.

A derivação imprópria, ou conversão, é um item que costuma figurar nas gramáticas dentro dos processos de formação de palavras. Em suma, trata-se do uso de uma palavra em uma classe gramatical diversa da original. Um caso típico é a transformação de verbo em substantivo com a anteposição de um artigo ou um pronome: "o cantar; meu cantar".

A linguagem coloquial é uma fonte em potencial desse processo. Basta observar frases retiradas do cotidiano tais como: "A garota era crânio" e "Esse Ricardo é muito comédia". Nelas, os substantivos em destaque assumiram valor de adjetivos: crânio pode ser substituído por inteligente e comédia por engraçado. Em “O preço do imóvel caiu bonito”, bonito é um adjetivo com função de advérbio de intensidade, se o interpretarmos como "muito", ou de modo se pensarmos em "rapidamente". Em "Soltou um caraca que o denunciou", uma interjeição típica de um falar regional, uma gíria, foi substantivada. E no exemplo "Vamos esperar papo de meia hora", papo, que é um substantivo, atua como preposição acidental (igual a "em torno de"). Por fim, em "Só aceito o sim como resposta", o advérbio de afirmação funciona como substantivo.

Poderíamos preencher um livro com várias sentenças desse tipo e, mesmo assim, não esgotaríamos os exemplos. A língua é dinâmica e, por isso, os estudantes devem constantemente analisar as expressões que ouvem no dia a dia, pois as bancas têm focado questões de interpretação cujas ferramentas estão nos conhecimentos morfológicos, fonéticos, sintáticos, entre outros e esse saber (eis aí um verbo como substantivo) é um grande diferencial que pode definir a classificação, ou não, do concursando. Por isso, atenção! Pode ser que um trecho do "papo cabeça" que você teve com um amigo apareça numa questão de prova. E, para não perder o ensejo, essa "cabeça" de natureza substantiva, aqui, atuou como adjetivo.

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2011