domingo, 20 de dezembro de 2009

Crônica (04)

É TEMPO DE METÁFORAS

Que a linguagem nos oferece motivos de sobra para discussões e especulações não é novidade para ninguém. Vivemos em torno dessa inesgotável forma de expressão, a um tempo ilimitada para nos servir em nossa necessidade de dizer e de não dizer o que pensamos e queremos, mas tam-bém – paradoxal que seja – insuficiente para dar conta de toda a complexidade de nossa natureza de seres pensantes instáveis, contraditórios e eternamente insatisfeitos – ou não.

Uma lata existe para conter algo. Mas, quando o poeta diz "lata", pode estar querendo dizer o incontível. Gilberto Gil, em versos simples (seriam simples?), refere-se a uma figura de linguagem velha conhecida, dessas que nos acompanham em nossas tentativas de comunicação com nossos semelhantes. Eu, como ele, referimo-nos à metáfora...

Abrindo qualquer jornal, de qualquer dia, lá está ela – viva, presente, divulgada. Pode ser uma metaforazinha corriqueira, tipo "chuva de pedras" (numa notícia que fala de jovens palestinos atirando pedras em escavadeira israelense), "o santuário da Amazônia" (em reportagem sobre declaração do presidente ao inaugurar gasoduto no Amazonas), "feirão de jogadores" (em matéria sobre evento futebolístico reunindo empresários interessados na contratação de atletas).

No entanto, a metáfora é uma forma de expressão que também pode ser original – e daí se explica a "lata" do poeta contendo o incontível. Quando vemos, por exemplo, na imprensa um artigo cujo título é "A linguiça democrática", é preciso ler o texto todo para compreender que o articulista estava, na verdade, comparando as sutilezas do regime democrático com a inusitada decisão de uma fábrica de automóveis alemã, que passou a produzir mais linguiças do que carros.

Observem na publicidade, nas letras de música e em nossa literatura como a criatividade dá conta desse recurso expressivo. Jornalistas, escritores, políticos, esportistas e artistas, todos praticam e divulgam metáforas, mas o mesmo fazem nossos amigos, vizinhos, parentes e colegas de trabalho. Estamos cercados pelas metáforas – eis aí mais uma, explorando a relação de similaridade entre elas (as metáforas) e as cercas, como se estivéssemos confinados num espaço dominado por elas, as poderosas metáforas. Nesse caso então, se estamos rodeados de metáforas por todos os lados, então façamos outra e nos vejamos numa ilha imaginária em pleno oceano metafórico.

É um tempo tão rico de metáforas – mas certamente não é o primeiro – que até o que não é metáfora quer às vezes receber o status retórico. Nesse caso, fiquemos atentos, pois tudo corre o risco de não querer dizer literalmente o que diz. "A gasolina vai subir dez por cento" seria uma metáfora? "Ministério público investiga suspeita de fraude" na verdade seria a transposição de quê? Quando o treinador fala "ficou parado, chuta o tornozelo dele", devemos pensar que ele só fez uma metáfora, sem nenhuma apologia à violência?

Por isso, o estudo e a observação dos textos, orais e escritos, de qualquer modalidade e registro são matéria rica para uma reflexão crítica. O leitor precisa estar atento e ser experto – isso mesmo, com X – para não ser envolvido pelas artimanhas do redator ou do orador. A não ser que assim o deseje, por opção consciente e deliberada.

Mostram os livros que o primeiro registro por escrito da palavra metáfora em nossa língua ocorreu no século XIV, mas o termo é de origem grega. Reconheçamos, pois, que durante esse tempo todo muito pouco deveria ter sobrado para a inventividade humana produzir metáforas.

Há quem ache que sim; há quem ache que não. Pelo sim, pelo não, cantemos a metáfora e, parodiando o compositor popular, entoemos a ela um hino de fogo e paixão: Você é luz, é raio, estrela e luar, manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô...

Fiquem bem!

Fonte: publicado no Jornal de Vila Isabel (n. 327), em agosto de 2004.