sábado, 18 de maio de 2013

Crônica (12)

DUAS CRONISTAS CONVIDADAS
Mais duas crônicas linguísticas para os leitores do blogue. São textos produzidos por duas alunas do sétimo período de Língua Portuguesa da UERJ (turma de 2012-2 do Instituto de Letras). O tema era GRAMÁTICA+LITERATURA, assunto de nosso curso.

ANDORINHA (por Isabela Fornazier)

Nunca fui da poesia, dos poemas. Muito menos do estudo deles. Mas, ao entrar numa faculdade de Letras, estudá-los e lê-los tornam-se obrigação. Eis que entrei. Passei a sê-lo menos ainda.

Os primeiros contatos não foram muito bons, como era de se esperar. Eles repeliam-me, o que eu podia fazer? Passaram desordenados Gonçalves, Casimiros, Mários, Adélias, Castros – Cruzes! Nem sequer Machado, de cuja prosa sempre fui grande admiradora, deu-me jeito. Poesia, para mim, apenas dissolvida na prosa. Chegou então o Manuel.

Andorinha, andorinha, minha cantiga não é mais triste, não! No momento certo, o Manuel chegou-me com a Andorinha. Poema breve: duas estrofes, dois versos em cada uma. Na primeira estrofe, a andorinha lá fora e seu dia à toa, à toa. Na segunda, o eu lírico lá dentro e sua vida à toa, à toa. Separação de estrofes e de melancolias. Enquanto lia repetidas vezes, eu me lembrava do pensamento clichê que me impulsionara, felizmente, para tantas decisões na vida. Foi como se o Manuel, com o perdão pelo infame trocadilho, tivesse hasteado uma enorme bandeira na minha memória, que tendia a falhar, dizendo: cante, andorinha.

No encontro com a tal ave, não houve modo de não a relacionar também à vida de seu autor. O vocativo criado possivelmente serviu-lhe de reflexo ao que o perseguiu ao longo de sua vida longa: a iminência da morte desde os dezoito. E numa outra época, lugar e situação, estava eu, lendo, lendo, lendo, lidando não mais com a iminência da poesia; ela já havia me alcançado.

A partir dos quatro versos-bandeira, deixei que o resto do livro passasse todas as suas páginas amareladas diversas vezes pelos meus olhos e mãos. E foi impossível não lhes ser: não satisfeito em passá-las, entranhou-as em mim. Ainda eu não era de todos os poemas da literatura (quem os é?), mas ali aparecia o que parecia a primeira faísca de uma talvez futura fogueira.

Se uma andorinha não faz verão no lugar-comum, naquele momento que vivi ela o fez. A andorinha do Manuel, vazia, só, de cantiga triste, ironizada melancolicamente pela cantiga do eu lírico, carregava em si mais um dos dias manuelinos. Para mim, essa mesma andorinha carregou o meu vazio e me trouxe a clareza de volta. Por pura coincidência, era verão lá fora. Agora, era também aqui dentro.

Nunca fui da poesia, dos poemas. Muito menos do estudo deles. Mas, ao entrar numa faculdade de Letras, estudá-los e lê-los tornam-se obrigação. Eis que entrei. Passei a ser andorinha feliz.

NO MEIO DO CAMINHO (por Vanessa Gomes Teixeira)

Um dia qualquer. Uma ida qualquer ao trabalho. Sete horas da manhã. O ônibus lotado. Um trânsito infernal. Parece que houve um acidente e há um carro no meio da pista. Ao organizar esse pensamento, lembro imediatamente do poema do Carlos Drummond de Andrade, aquele que fala sobre a pedra no meio do caminho. Entediada por causa do calor e dos carros que não andam, fico com estes versos na cabeça: “tinha uma pedra no meio do caminho” / “no meio do caminho tinha uma pedra”.

Por que será que Drummond repete tantas vezes as palavras “pedra” e “caminho”? Apesar de o poema ter apenas dez versos, “pedra” é repetida sete vezes e “caminho” é repetida seis vezes... Afinal, o que será que essa observação do poeta significa? Sei que há estudos que explicam que a pedra, na verdade, é uma metáfora dos problemas da vida... E se for, será que o poema fala que os problemas nunca acabam, já que, na própria estrutura textual, a pedra bloqueia o caminho antes e depois nos versos? Será que essa sequência “tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra” cria obstáculos que se desencadeiam sem fim? Além disso, se a pedra representar mesmo os problemas da vida, será que esse trânsito é a pedra do meu caminho?

Tenho meu pensamento interrompido por um barulho de buzina e percebo que o ônibus se aproximou do local do acidente. Na verdade, também tinha um caminhão envolvido na batida: pessoas recebendo ajuda médica, vidros quebrados no chão e muitos espectadores observando de longe (o que causava todo o transtorno, por sinal). Paro para pensar e me questiono de novo: será que os veículos são realmente as pedras no meio do caminho ou sou eu o obstáculo que impede que a ajuda chegue mais rapidamente para os feridos? Concluo que, talvez, "ter problemas" seja uma questão de ponto de vista, já que eu me preocupava apenas em chegar ao trabalho enquanto pessoas tentavam sobreviver a uma tragédia. No final das contas, me sinto mal por ter me preocupado com uma pedrinha enquanto pessoas a poucos metros de mim enfrentavam um pedregulho.

Novamente meu raciocínio é interrompido, agora por um barulho de ambulância. Escuto um passageiro perguntando se alguém teve ferimentos graves: para o alívio de todos, as vítimas estavam bem. Após passar por essa experiência, vou para o trabalho refletindo que, assim como o poeta, acho que nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão estressadas por causa da rotina. Talvez a grande lição de Drummond para nós não foi ter colocado um obstáculo no caminho e, sim, ter colocado a pedra no meio dele, para que pensemos sempre sobre como retirá-la e continuar seguindo a nossa estrada até o fim.

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2012

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Crônica (11)

ELA ME IRRITA, MAS EU GOSTO
[por Gabrielle Martins Soares, cronista convidada - aluna do quinto período do Instituto de Letras da UERJ]

Não! Respondi sem titubear quando a proposta me foi feita. Como eu poderia aceitar o convite para ser professora de língua portuguesa de um pré-vestibular comunitário, se ainda não me sentia preparada para solucionar as questões problemáticas desse emaranhado de normas que formam a chamada língua culta – ou padrão, para quem tem um maior apreço pelas variações linguísticas?

Para não perder a oportunidade de ganhar o título de professora, peguei a turma de redação, e há três anos me mantenho frente a ela. Ledo engano para quem achou que saber a necessidade de uma introdução, três argumentos e uma conclusão seria o suficiente para dar aulas de produção textual. Ao longo desses anos de “casa”, descobri que, se eu não quisesse me deparar com dúvidas complexas acerca da língua, deveria ser professora de matemática.

Ainda este ano, tive que tirar do bolso a fatídica frase – vou pesquisar e na aula que vem eu te digo – para responder por que malvado é com l, logo após explicar a diferença entre mau e mal. Muitas “aulas que vem” se passaram e eu ainda não descobri. Eventualmente, amorfologia se mostra um problema. Contudo, o que realmente me confunde é a sintaxe, essa bondosa malvada coordenadora de palavras e orações, que assusta desde os pré-vestibulandos até os professores da língua.

Sempre escutei que “nunca se separa sujeito de predicado numa frase escrita na ordem direta” e nunca não permite exceções. E lá estava eu, de frente para um livro que deveria solucionar minhas dúvidas, tentando compreender as regras de subordinação de orações, quando me deparo com um “Quem tudo quer, nada tem”. Opa! Pode isso, Arnaldo? O que aquela virgulazinha está fazendo ali entre o sujeito e o predicado? No canto superior esquerdo do livro está a minha resposta escrita a lápis: a vírgula é por estilo e é permitida. Quando eu escrevi isso? Quando eu aceitei essa explicação sem fazer um escarcéu? A regra é clara. Nunca é nunca. A coordenadora das relações oracionais não deveria permitir isso, mas quando a chefe da empresa, a senhorita Estilística – solteira, nunca se vincula – diz que pode; então, pode.

Eu defendia a ideia de que “toda a regra tem uma exceção”; só que, pelo visto, não ando em consonância com o que costumava afirmar. Não gosto de abrir concessões em alguns casos. Isso me irrita. O verbo ser serve para designar estado, condição, é o famoso verbo de ligação: liga o sujeito ao seu predicativo. Entretanto – tinha que ter um porém –, quando for usado para indicar tempo ou fenômenos meteorológicos, fará parte de uma oração sem sujeito. Em “são duas horas”, por exemplo, são deveria ser verbo de ligação, mas não o é, afinal, está ligando o que, se não há sujeito? E duas horas? Não sendo predicativo, nem objeto direto ou indireto, é o quê? Para finalizar, a parte mais interessante dessa pequena estrutura oracional é que o verbo concorda com o sintagma duas horas, o que quer que este seja. Dentre todos os verbos impessoais que definem tempo, somente o verbo ser varia de acordo com a expressão numérica. Até Hamlet se questionava sobre isso: “Ser ou não ser, eis a questão”.

Expostas algumas das minhas picuinhas com a sintaxe da língua portuguesa, devo confessar que paradoxalmente eu gosto disso tudo. O que me irrita me atrai e quem desdenha quer comprar. O importante é saber que sempre terei uma “aula que vem” e gramáticas não irão me faltar. Dessa vez, quando vier um convite para dar aulas de português, a resposta será sonora. Sim!!!

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2012.