sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Académico (03)

DITOSA LÍNGUA (Hélia Correia)

A escritora portuguesa HÉLIA CORREIA recebeu no dia 7 de julho de 2015 o Prémio Camões em Lisboa. Este é o texto que a escritora leu na entrega.

A escritora portuguesa O peso destes nomes curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza ser o primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos, menor pavor inspira a sua sombra. Não venho aqui como parceira mas como íntima, como alguém mais ligado pelo amor do que por ambições identitárias. Com Luis de Camões passeio em Sintra, enquanto ele espera o jovem rei que anda pelos bosques, enfeitiçado, já um pouco ensandecido. E a ligação aos meus contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa, Mia Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me infantilmente o coração quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que esvoaça num jardim de Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu, uma tão querida voz ao telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com eles, não entre eles. E assim estou bem.

Devo falar de tripla gratidão: a gratidão aos promotores deste prémio ao qual foi dado o nome maior das nossas letras, a gratidão aos membros do júri que escolheram a minha escrita para tamanha dádiva, a gratidão a um acaso de nascimento que me deu como língua materna o português. 

Também com gratidão evoco a tão citada, e mal, passagem escrita por Pessoa, aliás Bernardo Soares, pois que, achando-se escrita, e por ele escrita, me abre um certo caminho à ousadia: que amo mais a língua do que a pátriaQue me imagino armada, a defendê-la contra quem a quisesse aniquilar. As lutas pela independência que travámos deixam-me o arrepio de pensar que o português se perderia, se perdêssemos. Que morte há de ter sido a de Camões, julgando que morria com a pátria, isto é, com o lugar dos seus poemas!

Rodrigues Lobo formulou-lhe o elogio de maneira concisa e musical ("branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver") durante a ocupação filipina. Os rumos da política eram uns, o castelhano em palácio havia muito que se fazia ouvir, mas essa língua da nação, tão acabada que sem esforço hoje a lemos, tão fadada para arrebatamentos de oratória como para a sátira, como para o lirismo, cultivando sem vénia a erudição para logo a seguir brincar com ela, essa língua era a grande resistente – não a expressão de um povo: a sua essência.

Faz agora oito séculos esta língua. É a prosa formal de um testamento que atesta a data. E prosas há tão belas naquele dealbar, tão saborosas ainda quando anónimas, que dir-se-iam um bom pressentimento sobre o tanto e o tão grandioso que depois ia ser escrito. Mas é na poesia que parece avistar-se um destino, no sentido não de fatalidade mas daquilo a que alguns chamam o talento colectivo e que talvez não passe de especial, convidativa variedade na fonética.

Fácil é para nós esta função de herdeiros de tesouro tão diverso e tão bem acabado, tão antigo e, no entanto, tão reconhecível. Enquanto noutras línguas a pronúncia se foi modificando, a ponto de uma rima do século XIX já não se efectivar passadas décadas, nós cantamos Camões sem que se torne necessária qualquer adaptação. Como se cada uma das palavras reconhecesse o seu momento de perfeição e nele se detivesse, porque o quis. O apetite pelos estrangeirismos, moderado que foi, não lhe fez mal. Incorporou-os elegantemente. Não me refiro às condições presentes, pois, do que ninguém sabe, ninguém fala. E ninguém sabe o que está hoje a acontecer.

Esta paixão pela língua portuguesa, que aqui confesso, cega não será, superlativa muito menos. Entendo-a rica, porque vem das boas famílias dos antigos e o que recebeu multiplicou. Mas nunca afirmarei que é a mais rica ou a mais bela do mundo. Cada povo verá no seu idioma mais virtudes que em idiomas alheios. Que a disputa, se a houver, seja festiva, pois que os idiomas não ocupam espaço e não geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa, está, porém, aquilo que dizem História. E a História é bruta e territorial.
Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima. Dou-me por incapaz e renuncio a uma tentativa de discurso. Sei, sim, que houve opressão e apagamento. Mas talvez não nos caiba desculparmo-nos pelos conceitos e acções de antepassados, visto que não nos assumimos legatários e o continuum moral já foi cortado. Algum dia teremos, quero crer, a congratulação como vingança.

As línguas são os únicos seres vivos que não têm origem natural. O erro humano pode prolongar-se, mesmo inocentemente, por descuido. O português carregará ainda alguma febre imperial no corpo e é natural que desconfiem dele. Mas acontece que a repressão é mecânica e a língua é biológica. Se chega às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em breve sai e se desnuda e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam no chão, enferrujadas, podres. A formação orgânica progride.

Que desígnio será o seu, agora, se não o de trocar e conviver, isto é, integrar a plenitude, reconhecendo e respeitando a alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas, seremos nós os capazes de "Medir", como escreve o Professor Eduardo Lourenço, "esse impalpável mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no interior da mesma língua, esses novos imaginários"?

Como num pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar a esta nova era de horror e de destruição. Umas são nossas velhas conhecidas, outras indecifráveis, por ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos a chegada. Na Idade Média que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas. Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.

O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados a construírem uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo; quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol considera Lispector «uma irmã inteiramente dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar – não como o invasor ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração – um espaço livre, um sítio para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.

Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual não teríamos aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada". Viva a Grécia!

Fonte: Jornal PÚBLICO, 07 de julho de 2015.




quarta-feira, 29 de abril de 2015

Crônica (15)

CONTÁVEIS X INCONTÁVEIS, de CCH

“Na língua o que vale é o uso”, dizia o professor numa sala de aula, mas logo acrescentava: “o uso prestigiado pelas pessoas letradas”. Ele recomendava cuidado com os desvios estigmatizados e com as acusações promovidas pelos pseudoproprietários da correção de linguagem.

O conselho tinha sido motivado pelo debate trazido por um aluno, a partir da resposta encontrada num livro didático. O certo era “ele fez o máximo de cesta” ou “o máximo de cestas”? O livro dizia que era “cesta”, mas o aluno também queria aceitar “cestas”. Nessa hora, não vale adotar nenhum raciocínio lógico, filosófico sobre se a palavra pode ou não estar no singular (afinal, a ideia aí é plural). O caso não era de confronto entre certo e errado, pois se precisava verificar duas coisas: o uso e a tipologia dos substantivos nessa posição do sintagma.

Há uma diferença clara entre substantivos contáveis e não contáveis. São incontáveis nomes como sal, água, arroz, pipoca, honestidade... e são contáveis nomes como batata, livro, feijão, bala, sorriso... Assim, nunca (?) diremos “Coloque na comida o máximo de sais”, “Guardei no reservatório o máximo de águas”, “Você precisa agir com o máximo de honestidades”, etc. Por outro lado, poderemos dizer “Coloquei no prato o máximo de feijão/feijões”, “Enchi o bolso com o máximo de bala/balas”, “O jogador fez o máximo de cesta/cestas”.

A conclusão quanto a essas estruturas deverá mostrar que, quando se emprega um substantivo do grupo “não contável”, prevalece a forma singular. Prefere-se “Tenho um monte de pipoca para te oferecer” a “Tenho um monte de pipocas para te oferecer”, que não está errado (pois “pipoca” também se pode contar), mas não é a forma mais praticada. Ou “O armazém vendia um saco de arroz e outro de batata” a “O armazém vendia um saco de arrozes e outro de batatas”, que são igualmente corretos, pois “arroz” e “batata” também podem ser contados, embora dificilmente se veja alguém contabilizando quantos arrozes vão para a panela.

O mesmo critério de observação deve acontecer quando o substantivo pertence ao grupo das coisas “contáveis”. Parece que o uso preferido é o do plural, mas isso pode ser apenas um engano do ouvido autoritário de alguns. Devemos pedir um saco de balas e doces só porque esses substantivos são contáveis e porque o saco, obviamente, conterá um número plural de guloseimas? Se alguém pedir um saco de bala e doce, estará falando errado ou apenas exercendo o seu direito de usar a forma singular com valor plural?
Já dizia Mário Barreto, renomado filólogo da primeira metade do século passado: “A língua é o que é e não o que ela deveria ser ou o que quereríamos que ela fosse.” (Últimos Estudos, 1986, p. 229)

Ao final da aula, o professor mandou o máximo de lembretes (no plural) aos alunos, dizendo-lhes que deveriam fazer o máximo de esforço (no singular) para garantir com o máximo de certeza/certezas (no singular ou no plural) o que aprenderam sobre os usos prestigiados pela comunidade letrada.

Fiquem bem!

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 29/04/2015.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Crônica (14)

QUATRO CRONISTAS CONVIDADOS
Mais quatro crônicas linguísticas para os leitores do blogue. 

As duas primeiras foram produzidas por alunas do quarto período de Língua Portuguesa da UERJ (turma de 2014-2 do Instituto de Letras). O tema era MORFOLOGIA, assunto de nosso curso.


01. FLEXÃO DOS POSSESSIVOS (por Jakeline de Melo Fenna)


O ano letivo estava começando, e Margarida, pela primeira vez, iria dar aula de Língua Portuguesa. Ela formara-se há pouco e estava muito nervosa. O assunto nem era tão complexo, mas como falar de  pronomes possessivos para adolescentes numa segunda-feira 7h da manhã?

Na faculdade, aprendera que um bom professor deve cativar, atrair a atenção dos alunos, que ele tem de ser, acima de tudo, um artista. Então, Margarida decidiu fazer de sua primeira aula uma diversão, algo bem marcante. Recortou de revistas e jornais exemplos de frases com uso dos possessivos. Fez cartazes coloridos  até com fotos de artistas. Selecionou algumas músicas em que os possessivos ganhavam destaque e preparou uma dinâmica de grupo para fechar "com chave de ouro" sua primeira aula.

Chegou então o aguardado dia. Margarida levou todos os cartazes, as músicas, explicou com muita clareza que os pronomes  possessivos expressam um vínculo qualquer, constante ou eventual, entre o objeto ou assunto de que se fala e cada uma das pessoas do discurso. Ainda acrescentou que as gramáticas escolares brasileiras em geral apresentam um paradigma de formas pronominais possessivas que não corresponde, como conjunto, nem mesmo ao uso padrão escrito corrente do  português do Brasil. Depois  dividiu a turma em três grupos para a dinâmica. Os alunos deveriam estourar os balões que continham tiras de papéis com frases e organizá-las. Venceria a competição o grupo que montasse primeiro e mais corretamente o texto, com direito a  brindes.

Foi uma diversão, balões estourando, alunos lendo as frases invertidas, tentando organizar o texto de forma coerente, uma confusão. Para surpresa de Margarida, dois grupos conseguiram montar o texto ao mesmo tempo e leram em voz alta: Os pronomes possessivos se flexionam em gênero e número, concordando com o substantivo (a parte possuída) que determinam, com exceção das formas dele, dela, deles, delas e de vocês, que concordam com o possuidor.

Quando o sinal soou anunciando o fim da aula, os alunos lamentaram e muitos se despediram de Margarida dizendo que estavam ansiosos pela aula seguinte.

Margarida não conseguiu esconder a emoção e, antes mesmo  de fechar a porta da sala, já começava a imaginar como seria a próxima aula.

02. UMA QUESTÃO DE GÊNERO (por Jorginete Roux da Costa)

Uma distinção amplamente utilizada nos estudos linguísticos é a que opõe formas marcadas (feminino) e formas não marcadas (masculino). Nessa distinção entre marcado e não marcado, um dos termos do par é o uso mais amplo e dominante do não marcado, enquanto o outro, o marcado, é mais restrito e limitado.

Trata-se, como se vê, de uma relação assimétrica. Sua utilidade foi reconhecida também para outras áreas de estudo, como a sociologia, a antropologia e os estudos culturais.

Quando o assunto é gênero, a forma considerada marcada é sempre a feminina. Por exemplo: quando alguém diz que tem onze filhos, no caso a minha própria mãe, heroína, por formar um time de futebol no próprio lar, a gente não sabe se todos são homens ou se há algumas mulheres. No entanto, se a pessoa disser que tem 11 filhas, a ambiguidade desaparecerá. Assim, como a forma não marcada é muito mais usual, ela é considerada neutra.

Vale aqui, então, ressaltar que a dominação da forma marcada (masculina) se reflete na língua de forma preponderante. Afinal, se quatro mulheres e um cachorro sofrem um acidente ao atravessar a rua, diremos que eles foram atropelados. Ou seja, basta um cachorro para fazer sumir a especificidade feminina de quatro mulheres e jogá-las dentro do mesmo "balaio de gatos ou de cães” da forma neutra do masculino.

Outra curiosidade importante de ser lembrada é que os textos pedagógicos sempre se referem aos professores, embora as mulheres constituam a esmagadora maioria da profissão docente. Existem, também, por todo o país sindicatos de trabalhadores domésticos, ainda que saibamos que 99,9% desses trabalhadores sejam do sexo feminino.

No Brasil, logo após a posse de Dilma Rousseff na presidência da República em 2011, um debate linguístico emergiu quanto ao uso da palavra presidenta usada para designá-la. O debate na verdade era de cunho sociocultural e político. A própria Dilma declarou que desejava ser chamada de presidenta, para deixar bem marcada a significação histórica, inédita, nunca vista antes na história do PT, quero dizer do Brasil, de uma mulher no cargo máximo de um país como o nosso.

Em suma, tudo gira em torno da questão do gênero, e isso muitas vezes exacerba os ânimos de maiorias e/ou de minorias que se sentem excluídas dentro desse status quo, querendo mudar um comportamento sociocultural que vem de longe na história da humanidade.

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2014

As duas próximas foram produzidas por alunos de períodos variados de Língua Portuguesa da UERJ (turma de 2014-2 do Instituto de Letras). O tema era LÉXICO & SEMÂNTICA, assunto de nosso curso.

03. A LINGUAGEM DAS FIGURAS (por Anna Carolina Matos)

Quando peguei uma folha em branco para escrever esta crônica, não senti inspiração alguma. Sem ideias, parei, peguei, pensei... e dei de cara com um assíndeto e uma paronomásia. Mas falar sobre figuras de linguagem? Muito difícil! Continuei me concentrando. Distraída, passei direto por uma elipse pronominal e me questionei como os estudantes continuamos com essa falta de imaginação ainda na faculdade. A silepse de pessoa passou batida e me vi inerte sob a luz fria da luminária apoiada em minha bancada. Sem notar a sinestesia, olhei para a folha de papel na minha frente e vi que a caneta já havia rabiscado algumas palavras.

Nem me dei conta da personificação quando reconheci na tevê, que falava sozinha em um canto do quarto, o rei do futebol dando uma entrevista para um canal de esportes. Quase notei a antonomásia, mas bem a tempo me desconcentrei com o “toc-toc-toc” vindo do outro lado da porta fechada. Por meio segundo penso em onomatopeia, mas logo concentro minhas forças em reclamar: – Meu Deus! Dai-me paciência! Assim a bendita crônica não sai! – Mas o que sai é a apóstrofe no mesmo momento em que entra minha mãe perguntando: – Carolina, minha filha, vamos jogar preto no branco. Você vai ou não arrumar esse quarto? – Nem me preocupei com a antítese, com o zeugma muito menos. De que adianta? Não vou mesmo escrever sobre figuras de linguagem, ué.

Diz minha mãe que eu escrevo bem, mas sabe como é mãe, né... é puxa-saco, é incentivadora, é piegas. Pensando nessas coisas de mãe, perdi a inversão e a anáfora bem ali. E o tempo passava, e eu não me concentrava, e do namorado lembrava, e a inspiração não chegava. Fiquei nesse vai, vem, volta, vai não volta sei lá por quanto tempo. Cega, deixei passar polissíndeto e aliteração.

Concentrando-me para não chorar rios de lágrimas e alagar meu quarto, me escapava a hipérbole, mas decidi que, em vez de chorar, xingar e  me desesperar, eu deveria me render a um tema bem óbvio. Afinal (sem notar a gradação), a mim só me importava que a nota na tal crônica fosse tão boa como as das outras matérias. Um pleonasmo ali, uma símile aqui, e continuei seguindo. Pensei em olhar na internet, nesses “googles” da vida. Quem sabe alguma crônica pronta, de algum autor desconhecido? Mas achei melhor não. Eu realmente não queria fazer um bom texto utilizando meios ilícitos.

Eufemismos à parte, me desprendi lentamente dos braços da confortável cadeira em que estava e caminhei pensativamente até a estante em busca do bom e velho Aurélio. Estavam ali catacrese e metonímia, mas meu foco era o dicionário. Quem sabe eu não encontraria alguma palavra mágica que me inspirasse? Mas eu estava mesmo frita, nada me ocorria! Talvez o tema fosse óbvio e só eu é que não percebia. A metáfora também ficou esquecida. Como pode usarmos figuras de linguagem o tempo inteiro, e eu só me lembrar da ironia?


04. CRONIQUINHA (por Childerico Fernandes)

Garçom! A maquininha, por favor! A máquina usada em restaurantes para pagamento com cartão é pequena. O sufixo “-inha” cumpre sua função primária: diminuir o tamanho das coisas. Da mesma forma, existem casinhas de boneca, garfinhos de sobremesa, copinhos de plástico (aqueles que carregam comprimidos em hospitais), passarinhos e carrinhos de brinquedo. Entretanto, existem alguns outros empregos semânticos do diminutivo em nossa língua. Vejamos.

Oi, Samanta, sou eu, o Paulinho! Beleza? Tá a fim de pegar um cineminha? Quem sabe depois a gente vai naquele bistrozinho, senta naquela mesinha que a gente adora, bebe um vinhozinho, come uma coisinha... Cineminha? Vinhozinho? Comidinha? Tudo fofurismo. Paulinho não está necessariamente chamando a Samantha para ir ao Cine Joia. Nem beber uma versão em miniatura de um Merlot. Ao diminuir as coisas, Paulinho quer ser carinhoso, sedutor, fofo. Beber um vinhozinho sugere muito mais intimidade do que beber um vinho. Pegar um cineminha é muito mais gostoso do que pegar um cinema. Talvez Paulinho pegasse um cinema com seu amigo Paulão. Com a Samantha, ele pega um cineminha. Paulinho é fofo. Por isso lhe chamam de Paulinho.

Ao fim da sessão, Samanta diz ter odiado o filme. Que filminho, hem, Paulinho? Chatinho pacas, braveja. Samanta detestou "A Volta Da Múmia IV". Aqui, o uso do sufixo “-inho” amplifica o desprezo pelo filme e sua chatice. Aliás, Paulinho não sabe mais o que fazer para agradar a amada. Às vezes pensa: que namoradinha que fui arrumar! E assim vai levando sua vidinha, seu empreguinho e o transitozinho infernal que enfrenta todos os dias ao pegar a Brasil.

Existe o uso do diminutivo para enfatizar a inteireza de uma coisa, a completude de algo. Como na vez em que Paulinho ficou bebinho e teve uma baita de uma ressaca no dia seguinte. Samanta lhe fez um chá de boldo com alho e ficou muito feliz quando seu amado tomou tudinho. Tudinho mesmo. Não ficou uma gota de chá na xícara. Curou-se tão rápido que logo Samanta lhe entregou um balde e um esfregão pra limpar a vomitada que dera no corredor. Eu quero tudo limpinho, viu Paulinho!! Usa o Brilux pra lavar o pano depois. Quero ver ele branquinho!! Paulinho aprendeu sua lição. E hoje bebe direitinho.

De vez em quando, usa-se o diminutivo para atenuar uma qualidade ruim e diminuir o impacto da crítica. Quando falou do namorado para sua melhor amiga pela primeira vez e mostrou sua foto, Samanta disse que ele era feinho, mas supermegalegal, ser humano incrível, uma alma boníssima. Paulinho é um homem feio. Mas pra Samanta, ele é feinho. Paulinho tem um narigão. Pra Samanta ele é narigudinho. Barrigudo? Barrigudinho. Careca? Carequinha. Pesudo. Pesudinho. Paremos por aí.

Paulinho e Samanta vão se casar em breve. Já compraram uma casinha. Já juntaram um dinheirinho. Já escolheram os padrinhos e a cerimônia será numa igrejinha linda que fica pelos lados de Manguinhos. Será de tardezinha e a Samanta vai usar um vestidinho lindo! Vestidinho mesmo... curtinho... sabemos como são essas moças moderninhas. Paulinho já reservou um hotelzinho em Poços de Caldas para a lua de mel. Mas ele acha que ainda é muito cedo pra ter um filhinho; por isso, levará um estoque de camisinhas na viagem. Samanta concorda, os dois ainda são muito jovens e querem curtir a vida um pouquinho. 

Voltemos ao restaurante. O garçom traz a maquininha. Paulinho paga pelo jantarzinho com seu cartão e vão ele e Samanta de mãos dadinhas para casa. Mãos dadinhas? Não!!! Chega!!! Aí já é demais!!!

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2014