DITOSA LÍNGUA (Hélia Correia)
A escritora portuguesa O peso destes nomes curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza ser o primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos, menor pavor inspira a sua sombra. Não venho aqui como parceira mas como íntima, como alguém mais ligado pelo amor do que por ambições identitárias. Com Luis de Camões passeio em Sintra, enquanto ele espera o jovem rei que anda pelos bosques, enfeitiçado, já um pouco ensandecido. E a ligação aos meus contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa, Mia Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me infantilmente o coração quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que esvoaça num jardim de Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu, uma tão querida voz ao telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com eles, não entre eles. E assim estou bem.
Devo falar de tripla gratidão: a gratidão aos promotores
deste prémio ao qual foi dado o nome maior das nossas letras, a gratidão aos
membros do júri que escolheram a minha escrita para tamanha dádiva, a gratidão
a um acaso de nascimento que me deu como língua materna o português.
Também com gratidão evoco a tão citada, e mal, passagem
escrita por Pessoa, aliás Bernardo Soares, pois que, achando-se escrita, e por
ele escrita, me abre um certo caminho à ousadia: que amo mais a língua do que a pátria. Que me imagino armada, a defendê-la contra quem
a quisesse aniquilar. As lutas pela independência que travámos deixam-me o
arrepio de pensar que o português se perderia, se perdêssemos. Que morte há de
ter sido a de Camões, julgando que morria com a pátria, isto é, com o lugar dos
seus poemas!
Rodrigues Lobo formulou-lhe o elogio de maneira concisa e
musical ("branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover,
doce para pronunciar, breve para resolver") durante a ocupação filipina.
Os rumos da política eram uns, o castelhano em palácio havia muito que se fazia
ouvir, mas essa língua da nação, tão acabada que sem esforço hoje a lemos, tão
fadada para arrebatamentos de oratória como para a sátira, como para o lirismo,
cultivando sem vénia a erudição para logo a seguir brincar com ela, essa língua
era a grande resistente – não a expressão de um povo: a sua essência.
Faz agora oito séculos esta língua. É a prosa formal de um
testamento que atesta a data. E prosas há tão belas naquele dealbar, tão
saborosas ainda quando anónimas, que dir-se-iam um bom pressentimento sobre o
tanto e o tão grandioso que depois ia ser escrito. Mas é na poesia que parece
avistar-se um destino, no sentido não de fatalidade mas daquilo a que alguns
chamam o talento colectivo e que talvez não passe de especial, convidativa
variedade na fonética.
Fácil é para nós esta função de herdeiros de tesouro tão
diverso e tão bem acabado, tão antigo e, no entanto, tão reconhecível. Enquanto
noutras línguas a pronúncia se foi modificando, a ponto de uma rima do século
XIX já não se efectivar passadas décadas, nós cantamos Camões sem que se torne
necessária qualquer adaptação. Como se cada uma das palavras reconhecesse o seu
momento de perfeição e nele se detivesse, porque o quis. O apetite pelos
estrangeirismos, moderado que foi, não lhe fez mal. Incorporou-os
elegantemente. Não me refiro às condições presentes, pois, do que ninguém sabe,
ninguém fala. E ninguém sabe o que está hoje a acontecer.
Esta paixão pela língua portuguesa, que aqui confesso, cega
não será, superlativa muito menos. Entendo-a rica, porque vem das boas famílias
dos antigos e o que recebeu multiplicou. Mas nunca afirmarei que é a mais rica
ou a mais bela do mundo. Cada povo verá no seu idioma mais virtudes que em
idiomas alheios. Que a disputa, se a houver, seja festiva, pois que os idiomas
não ocupam espaço e não geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa, está,
porém, aquilo que dizem História. E a História é bruta e territorial.
Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa
sobre os povos são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e
desassombro em dose máxima. Dou-me por incapaz e renuncio a uma tentativa de
discurso. Sei, sim, que houve opressão e apagamento. Mas talvez não nos caiba
desculparmo-nos pelos conceitos e acções de antepassados, visto que não nos
assumimos legatários e o continuum moral
já foi cortado. Algum dia teremos, quero crer, a congratulação como vingança.
As línguas são os únicos seres vivos que não têm origem
natural. O erro humano pode prolongar-se, mesmo inocentemente, por descuido. O
português carregará ainda alguma febre imperial no corpo e é natural que desconfiem
dele. Mas acontece que a repressão é mecânica e a língua é biológica. Se chega
às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em breve sai e se desnuda
e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam no chão, enferrujadas,
podres. A formação orgânica progride.
Que desígnio será o seu, agora, se não o de trocar e
conviver, isto é, integrar a plenitude, reconhecendo e respeitando a
alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas, seremos nós os capazes de
"Medir", como escreve o Professor Eduardo Lourenço, "esse
impalpável mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no
interior da mesma língua, esses novos imaginários"?
Como num pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar a
esta nova era de horror e de destruição. Umas são nossas velhas conhecidas,
outras indecifráveis, por ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos
a chegada. Na Idade Média que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas.
Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que
começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não
salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.
O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos
finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do português,
leves fios resistentes e aplicados a construírem uma teia que não rasgue.
Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de Barros,
quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora
e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo; quando a portuguesa
Maria Gabriela Llansol considera Lispector «uma irmã inteiramente dispersa no
nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar – não como o invasor ocupa a
terra, mas como o sangue ocupa o coração – um espaço livre, um sítio para
viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a
ditosa língua, minha amada.
Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim
pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas
palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual
não teríamos aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da
Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada". Viva a
Grécia!
Fonte: Jornal
PÚBLICO, 07 de julho de 2015.