sábado, 29 de agosto de 2009

Crônica (02)

QUE PALAVRA GRANDE! , de CCH

A pessoa está radiante porque acaba de conquistar uma grande vitória na vida ou porque se emociona com um triunfo no esporte, na política ou com o sucesso de um familiar. Passar num concurso, ver o filho receber um diploma, vibrar com o resultado de uma eleição, fazer o gol do título, comemorar o campeonato do seu time, a medalha de ouro da seleção.

Sentimentos podem ser mesmo a “disposição afetiva em relação a coisas de ordem moral ou intelectual”, como está no dicionário. Eles representam a capacidade de conhecer, perceber, apreciar. Expressam-se por meio de palavras e gestos nos momentos de tristeza, pesar, desgosto, mágoa. E também nas situações que envolvem afeto, afeição, amor; entusiasmo, emoção, alma.

Para expressar nossos sentimentos – e aqui vamos nos concentrar mais nas situações de extrema alegria –, não basta pular, gritar, chorar. Usamos também palavras, não é? Todas elas significam, rigorosamente, a mesma coisa: “Estou felicíssimo!” ou “Como é bom passar por isso!”. Esses significados, porém, dificilmente são ditos com tais palavras. Geralmente, proferimos interjeições, palavras soltas, pequenas locuções, frases curtas: Parabéns! Uau! Valeu! Maravilha! É isso aí! Não tem pra ninguém! É o maior! Fera! Beleza! Agora quero ver! Vão ter que me engolir!

Nessa hora, as palavras pronunciadas nem sempre identificam o nível social, educacional ou a faixa etária de quem transborda de emoção. De suas gargantas, sonoro e potente, o sinônimo de “Maravilha!” e de “Valeu!” pode ser um aumentativo de palavra. Isso mesmo: nossos tão conhecidos palavrões, identificados nos estudos linguísticos como “termos chulos” ou “palavras de baixo calão”.

O campeão olímpico grita no pódio da medalha de ouro: “– Campeão! Brasil! Porra!” Os microfones captam outros “sinônimos”. Outrora impublicáveis, os palavrões perderam muito do antigo cerceamento. Foram levados para dentro das casas pelas transmissões de tevê e pelos filmes em VHS e DVD. Jornais e revistas os promoveram como elementos naturais a serem reproduzidos nas entrevistas ou conversas com artistas, atletas e políticos.

Mas, afinal, que encanto e impacto têm os palavrões na língua falada? Na verdade, podemos dizer que todos eles representam de modo concreto uma associação entre seu significado de partida, seus valores figurados e seu significado pragmático.

Explico: qualquer listagem de palavrões reunirá vocábulos que direta ou indiretamente se referem a sexo. Os valores figurados que essas palavras assumem quando não dizem respeito a sexo são geralmente relacionados a situações afetivas ou emotivas – daí, sua proximidade metonímica ou metafórica com sexo. Seu significado pragmático gira em torno de duas bases principais, uma positiva, outra negativa. Ambas se apresentam sob uma destas quatro possibilidades: interjeições (como a do campeão olímpico), frases imperativas (geralmente iniciadas com a forma “Vai...”), vocativos (em geral com os possessivos “seu” ou “sua”) e autoinvocações (também com possessivos, “meu” ou “minha”).

Essa associação tem muito a ver com os componentes sombrios de parte da história da sexualidade humana, sobretudo pela pregação de que “sexo” e "pecado" eram palavras do mesmo campo semântico. Em consequência, os desejos e as realizações possuíam (e ainda possuem) algo mais do que perturbador. E, por isso, se o sexo sempre foi “mal visto, escondido e deturpado” por moralistas de toda a sorte em todos os tempos, o efeito histórico natural seria a proliferação de usos linguísticos considerados típicos de pessoas de “baixo nível", “sujas e vulgares", causando aversão, constrangimento, reação. Isso explica inclusive o disfarce praticado para encobrir sua utilização, como nos casos de cacilda, pô, cdf, pqp...

A sociedade e a linguagem, porém, seguem seu rumo. A liberação sexual dos anos 70 e 80 não tratou do sexo somente do ponto de vista cultural ou biológico. Ajudou a rever também os hábitos da expressão oral, ampliando o uso dos “palavrões”, agora não apenas sinônimos de ofensas e xingamentos. Continuam, é lógico, a funcionar como tal. Todos conhecemos formas muito mais fortes para substituir “Me deixe em paz!”, “Não gosto de você!” ou “Você é um velhaco!”. O interessante é verificar que hoje, quando alguém quer dizer “Como estou feliz!” ou “Que beleza!”, pode escolher (sem sentir?) um palavrão-interjeição.

Caraca!

Fiquem bem!

Fonte: publicado no Jornal de Vila Isabel (n. 328), em setembro de 2004.

7 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do artigo. Ele nos libera de certos ranços como "palavrão na literatura não pode!" ou "Livros desse escritor não servem para ser lido ou estudado em sala de aula. Tem muito palavrão". Teses ou dissertasções acadêmicas,então, nem pensar, que fraco gosto!" A turma que se dedica a estudar a palavra agradece a iniciativa
Um abraço

Roberta disse...

Maravilhosa crônica!!! Faz-me lembrar das histórias contadas por meu pai,quando atravessou a difícil tarefa de escolher meu nome.Nas vezes em que assistia aos jogos de seu time preferido, entusiasmado e envolvido com tantas palavras "expressivas", já tinha em mente como eu me chamaria: Roberta!! Pois é... homenagem certeira ao artilheiro do time da Colina.Nome escolhido num emaranhado de sentimentos,realçados através de palavrões e palavrinhas...não importa!!!Isso prova que palavra é sentimento. Puro e genuíno!!Agradeço a oportunidade de catarsear o orgulho de minha "graça" por intermédio de seu texto.Amplexos...

Robert disse...

Gostei, achei super interessante saber que pessoas cultas e estudadas também estudam os ´´aumentativos de palavras``.

Robert Gomes

Unknown disse...

Caríssimo,
Como diriam os nativos de uma cidade na qual eu morei na infância, muito,muito longe daqui (far far away)
"Pai d´égua!".

Chico Arruda disse...

Gostei do comentário "pai d'égua" rsrs. Lembro que discutimos isso uma vez em sala de aula, muito bom CCH. O palavrão-interjeição é muito mais que válido, é expressão maluco rsrsr

Livia.Jacob disse...

..que pariu, Claudio. O texto está excelente. Gostei mesmo! Por aqui posso matar a saudade das aulas. Bjkas.

Anônimo disse...

Fico contente em saber que "os pecados vocabulares" estão a se reduzir. Com o aval de seu texto, então, o caminho fica mais livre para o uso expressivo dessas palavrinhas.
Um abraço
Denise Salim