domingo, 20 de dezembro de 2009

Crônica (04)

É TEMPO DE METÁFORAS

Que a linguagem nos oferece motivos de sobra para discussões e especulações não é novidade para ninguém. Vivemos em torno dessa inesgotável forma de expressão, a um tempo ilimitada para nos servir em nossa necessidade de dizer e de não dizer o que pensamos e queremos, mas tam-bém – paradoxal que seja – insuficiente para dar conta de toda a complexidade de nossa natureza de seres pensantes instáveis, contraditórios e eternamente insatisfeitos – ou não.

Uma lata existe para conter algo. Mas, quando o poeta diz "lata", pode estar querendo dizer o incontível. Gilberto Gil, em versos simples (seriam simples?), refere-se a uma figura de linguagem velha conhecida, dessas que nos acompanham em nossas tentativas de comunicação com nossos semelhantes. Eu, como ele, referimo-nos à metáfora...

Abrindo qualquer jornal, de qualquer dia, lá está ela – viva, presente, divulgada. Pode ser uma metaforazinha corriqueira, tipo "chuva de pedras" (numa notícia que fala de jovens palestinos atirando pedras em escavadeira israelense), "o santuário da Amazônia" (em reportagem sobre declaração do presidente ao inaugurar gasoduto no Amazonas), "feirão de jogadores" (em matéria sobre evento futebolístico reunindo empresários interessados na contratação de atletas).

No entanto, a metáfora é uma forma de expressão que também pode ser original – e daí se explica a "lata" do poeta contendo o incontível. Quando vemos, por exemplo, na imprensa um artigo cujo título é "A linguiça democrática", é preciso ler o texto todo para compreender que o articulista estava, na verdade, comparando as sutilezas do regime democrático com a inusitada decisão de uma fábrica de automóveis alemã, que passou a produzir mais linguiças do que carros.

Observem na publicidade, nas letras de música e em nossa literatura como a criatividade dá conta desse recurso expressivo. Jornalistas, escritores, políticos, esportistas e artistas, todos praticam e divulgam metáforas, mas o mesmo fazem nossos amigos, vizinhos, parentes e colegas de trabalho. Estamos cercados pelas metáforas – eis aí mais uma, explorando a relação de similaridade entre elas (as metáforas) e as cercas, como se estivéssemos confinados num espaço dominado por elas, as poderosas metáforas. Nesse caso então, se estamos rodeados de metáforas por todos os lados, então façamos outra e nos vejamos numa ilha imaginária em pleno oceano metafórico.

É um tempo tão rico de metáforas – mas certamente não é o primeiro – que até o que não é metáfora quer às vezes receber o status retórico. Nesse caso, fiquemos atentos, pois tudo corre o risco de não querer dizer literalmente o que diz. "A gasolina vai subir dez por cento" seria uma metáfora? "Ministério público investiga suspeita de fraude" na verdade seria a transposição de quê? Quando o treinador fala "ficou parado, chuta o tornozelo dele", devemos pensar que ele só fez uma metáfora, sem nenhuma apologia à violência?

Por isso, o estudo e a observação dos textos, orais e escritos, de qualquer modalidade e registro são matéria rica para uma reflexão crítica. O leitor precisa estar atento e ser experto – isso mesmo, com X – para não ser envolvido pelas artimanhas do redator ou do orador. A não ser que assim o deseje, por opção consciente e deliberada.

Mostram os livros que o primeiro registro por escrito da palavra metáfora em nossa língua ocorreu no século XIV, mas o termo é de origem grega. Reconheçamos, pois, que durante esse tempo todo muito pouco deveria ter sobrado para a inventividade humana produzir metáforas.

Há quem ache que sim; há quem ache que não. Pelo sim, pelo não, cantemos a metáfora e, parodiando o compositor popular, entoemos a ela um hino de fogo e paixão: Você é luz, é raio, estrela e luar, manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô...

Fiquem bem!

Fonte: publicado no Jornal de Vila Isabel (n. 327), em agosto de 2004.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Poesia (03)

QUESTÃO DE PONTUAÇÃO, de João Cabral

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca)

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política)

o homem só não aceita do homem
que use a pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive,
o inevitável ponto final.

Fonte: Poesia Completa.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Crônica (03)

DUAS ESTRADAS ACADÊMICAS

Saber preparar profissionais capazes de transformar o aluno de nível médio em um usuário competente da linguagem é um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa nos cursos de Letras. Ser um usuário competente da linguagem não é apenas ser capaz de ler criticamente qualquer tipo de texto, mas também ter a capacidade de produzir textos dotados de tal significado e estrutura que seu eventual leitor os receba de modo natural, isto é, concentrando-se na mensagem transmitida, embora eventualmente possa mesmo deter-se sobre alguma construção ou escolha de palavras que lhe pareça passível de uma reflexão metalinguística. Todavia, ser um usuário competente da linguagem é igualmente saber explicar como ela funciona, e isto ultrapassa os limites mais específicos das atividades didático-pedagógicas voltadas para as aulas de redação e alcança um campo dito “minado”, qual seja a tarefa de apresentar tópicos de teoria gramatical direcionados para que se possa atingir aquele a que chamo, no início deste parágrafo, um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa – e agora não apenas nos cursos de Letras, mas em todas as salas de aula onde atue um professor de Português.

Vislumbro, neste ponto, duas estradas paralelas que levam ao mesmo destino, a uma cidade imaginária (Éden?), habitada por cidadãos conscientes, expressivos e críticos, construtores de sua cidadania plena a partir do direito que lhes foi assegurado de ter o domínio de sua própria língua nacional, com a autonomia e a faculdade de distinguir os usos que melhor lhes aprouverem.

Os futuros profissionais da área de Letras recebem um bilhete ao ingressar no curso superior, iniciam sua viagem e, durante todo o trajeto, se abastecem dos princípios norteadores de sua pretendida opção de ensinar Português. Na estrada que percorrem, param em oficinas sintagmáticas e paradigmáticas, veem outdoors estruturalistas e transformacionais, lojas funcionalistas de peças discursivas e até um minishopping com coesas e coerentes butiques pragmáticas. É uma rodovia razoavelmente conservada, nem sempre bem sinalizada, com pedágios e postos de fiscalização comandados por professores de Língua Portuguesa e de Linguística, vários entroncamentos que levam para outros destinos e placas indicativas de retorno a cada mil metros. Nem sempre os que conseguem terminar a jornada acham a cidade que procuram e muitos acabam chegando à conclusão de que talvez tivesse sido melhor consultar um mapa antes de começar o percurso.

Diz a lenda da região que vários deles procuram ajuda numa pequena mercearia de beira de estrada, que também serve de posto de informações. Lá, se dão conta de que, para chegar à cidade, ainda será preciso seguir pela outra estrada, a que chamam vicinal... Ficam sabendo inclusive que, ao longo da rodovia pela qual vieram, eles passaram por vários acessos a essa outra estrada, embora isso não lhes garantisse chegar ao lugar pretendido. Perguntam onde estão e se surpreendem quando lhes dizem que aquele lugarejo tem o nome de Burrosnágua – neologismo que teria sido criado em homenagem a seus fundadores, um casal analfabeto beberrão que ali se estabeleceu no início da década de setenta.

Há os que fixam residência nesse pequeno povoado, mas há também os que partem, enfim, em direção àquela estradinha secundária, obcecados em alcançar Éden. Estes ficam se indagando por que, quando lhes falavam dela, diziam: - Ah, sim. É uma estrada que já teve a sua importância, mas que, hoje em dia, está meio posta de lado. Falam que é mal assombrada... Até seu nome é estranho, Estrada do Sermão...

Nessa outra estrada há muitas curvas, pistas estreitas, poucos acostamentos, mas o asfalto é liso e são bem visíveis as faixas amarelas que indicam os pontos onde é permitida a ultrapassagem. As lojinhas que a margeiam vendem lembranças estilísticas e enfeites semântico-expressivos. Uma delas é especializada em discutíveis suvenires ortográficos e curiosos berrantes sintáticos de difícil colocação. Os postos de fiscalização parecem abandonados. Alguns dão a impressão de terem sido alvo de pichadores rodoviários. Na subida da serra, há uma fonte de água transparente e alguns vendedores de frutas da estação. Há várias placas que apontam em direção à rodovia principal, todas elas com um lembrete muito sugestivo: “Cuidado ao adentrar!”.

Retomo, então, o prumo desta prosa e busco nessa Estrada do Sermão o tema da correção gramatical, que é, para o profissional da área de Letras, a um só tempo, instigante e paradoxal. Digo desafiador, porque me reporto à inevitável cobrança de conhecimento acerca das noções de “certo” e “errado” de que é alvo todo especialista em questões de língua. E digo contraditório, pois transfiro para essa sua “decisão soberana” todo o drama de um juiz que, a cada instante, se vê enredado pelas tranças de regras e de intransigências legais acerca das adequações e inadequações desta ou daquela construção.

A norma culta é um enigma. Onde se esconde essa criatura tão decantada em enunciados de provas, programas de concursos e orientações para monografias? Será que ela ainda mora naquelas mesmas gramáticas conceituadas que há uma ou duas dezenas de anos vêm sendo acusadas de ranços retrógrados de uma língua que não se usa mais? Observo que, na verdade, essa tal norma culta já nem representa mais a sociedade culta porque esta já não fala nem escreve em língua culta.

Lembro também que, ao longo de sua formação, o futuro profissional da área de Letras terá de comprovar na prática que é possuidor de duas qualidades: detém o conhecimento crítico da teoria gramatical e exercita plena e satisfatoriamente esse conhecimento na produção de seus próprios textos acadêmicos, algo que é concreto e que precisa ser enfrentado, a partir de uma preocupação autoritária e conservadora.

Friso, ademais, a atenção que se deve dar aos registros normalmente inseridos em trabalhos de graduação e de pós-graduação: citações, ilustrações, notas bibliográficas e pessoais, etc. Costuma-se, para estes itens, seguir uma série de outras determinações. Muitas delas tomam, às vezes, ares de paranoia formal e, por esse motivo, se juntam harmoniosamente aos ataques psicóticos naturais daquelas regras obsessivas impostas pelos detentores da presumida sabedoria científica. Menos mal que já é possível constatar que, atualmente, a padronização dos trabalhos acadêmicos está merecendo um tratamento mais pedagógico do que carcerário, o que garante alguma tranquilidade para o estudante-autor.

Porém acrescento que, se no nível médio a gramática não pode mesmo ser enfocada unicamente como um estudo metalinguístico, exceto nas ocasiões explícitas de necessidade, o mesmo não se pode dizer em relação ao seu estudo nos cursos de Letras. Neste nível, é vital dar ao futuro professor de Português a ferramenta de sua atividade profissional, sob pena de se estar colocando no mercado de trabalho um especialista que não domina sua especialidade. Alguém que corrigirá redações sem saber fazê-las ou que cobrará regras que não explica e muito menos entende.

E, por fim, se este texto, que se aproxima de seu desfecho, puder servir para alguma coisa, que seja pelo menos para exemplificar uma modalidade de expressão dotada de “estruturas bem formadas”, adequadas gramaticalmente aos seus objetivos – caso explícito de metalinguagem, mesmo que artesanal e de valor literário discutível...

Para chegar a Éden, falta juntar as duas estradas, pavimentá-las por igual e percorrer o trajeto com a velha certeza de que a sinalização, as lojas e oficinas, os postos de serviço e de fiscalização constituem um patrimônio comum. Só assim Burrosnágua poderá desaparecer do mapa.

Fiquem bem!

Fonte: extraído, com adaptações, de A Produção de Monografias (Dialogarts, 1998).

sábado, 29 de agosto de 2009

Crônica (02)

QUE PALAVRA GRANDE! , de CCH

A pessoa está radiante porque acaba de conquistar uma grande vitória na vida ou porque se emociona com um triunfo no esporte, na política ou com o sucesso de um familiar. Passar num concurso, ver o filho receber um diploma, vibrar com o resultado de uma eleição, fazer o gol do título, comemorar o campeonato do seu time, a medalha de ouro da seleção.

Sentimentos podem ser mesmo a “disposição afetiva em relação a coisas de ordem moral ou intelectual”, como está no dicionário. Eles representam a capacidade de conhecer, perceber, apreciar. Expressam-se por meio de palavras e gestos nos momentos de tristeza, pesar, desgosto, mágoa. E também nas situações que envolvem afeto, afeição, amor; entusiasmo, emoção, alma.

Para expressar nossos sentimentos – e aqui vamos nos concentrar mais nas situações de extrema alegria –, não basta pular, gritar, chorar. Usamos também palavras, não é? Todas elas significam, rigorosamente, a mesma coisa: “Estou felicíssimo!” ou “Como é bom passar por isso!”. Esses significados, porém, dificilmente são ditos com tais palavras. Geralmente, proferimos interjeições, palavras soltas, pequenas locuções, frases curtas: Parabéns! Uau! Valeu! Maravilha! É isso aí! Não tem pra ninguém! É o maior! Fera! Beleza! Agora quero ver! Vão ter que me engolir!

Nessa hora, as palavras pronunciadas nem sempre identificam o nível social, educacional ou a faixa etária de quem transborda de emoção. De suas gargantas, sonoro e potente, o sinônimo de “Maravilha!” e de “Valeu!” pode ser um aumentativo de palavra. Isso mesmo: nossos tão conhecidos palavrões, identificados nos estudos linguísticos como “termos chulos” ou “palavras de baixo calão”.

O campeão olímpico grita no pódio da medalha de ouro: “– Campeão! Brasil! Porra!” Os microfones captam outros “sinônimos”. Outrora impublicáveis, os palavrões perderam muito do antigo cerceamento. Foram levados para dentro das casas pelas transmissões de tevê e pelos filmes em VHS e DVD. Jornais e revistas os promoveram como elementos naturais a serem reproduzidos nas entrevistas ou conversas com artistas, atletas e políticos.

Mas, afinal, que encanto e impacto têm os palavrões na língua falada? Na verdade, podemos dizer que todos eles representam de modo concreto uma associação entre seu significado de partida, seus valores figurados e seu significado pragmático.

Explico: qualquer listagem de palavrões reunirá vocábulos que direta ou indiretamente se referem a sexo. Os valores figurados que essas palavras assumem quando não dizem respeito a sexo são geralmente relacionados a situações afetivas ou emotivas – daí, sua proximidade metonímica ou metafórica com sexo. Seu significado pragmático gira em torno de duas bases principais, uma positiva, outra negativa. Ambas se apresentam sob uma destas quatro possibilidades: interjeições (como a do campeão olímpico), frases imperativas (geralmente iniciadas com a forma “Vai...”), vocativos (em geral com os possessivos “seu” ou “sua”) e autoinvocações (também com possessivos, “meu” ou “minha”).

Essa associação tem muito a ver com os componentes sombrios de parte da história da sexualidade humana, sobretudo pela pregação de que “sexo” e "pecado" eram palavras do mesmo campo semântico. Em consequência, os desejos e as realizações possuíam (e ainda possuem) algo mais do que perturbador. E, por isso, se o sexo sempre foi “mal visto, escondido e deturpado” por moralistas de toda a sorte em todos os tempos, o efeito histórico natural seria a proliferação de usos linguísticos considerados típicos de pessoas de “baixo nível", “sujas e vulgares", causando aversão, constrangimento, reação. Isso explica inclusive o disfarce praticado para encobrir sua utilização, como nos casos de cacilda, pô, cdf, pqp...

A sociedade e a linguagem, porém, seguem seu rumo. A liberação sexual dos anos 70 e 80 não tratou do sexo somente do ponto de vista cultural ou biológico. Ajudou a rever também os hábitos da expressão oral, ampliando o uso dos “palavrões”, agora não apenas sinônimos de ofensas e xingamentos. Continuam, é lógico, a funcionar como tal. Todos conhecemos formas muito mais fortes para substituir “Me deixe em paz!”, “Não gosto de você!” ou “Você é um velhaco!”. O interessante é verificar que hoje, quando alguém quer dizer “Como estou feliz!” ou “Que beleza!”, pode escolher (sem sentir?) um palavrão-interjeição.

Caraca!

Fiquem bem!

Fonte: publicado no Jornal de Vila Isabel (n. 328), em setembro de 2004.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Poesia (02)

POEMA, de Eugénio de Andrade

Escuta
Escuta
Tenho ainda uma coisa a dizer
Não é importante, eu sei
Não vai salvar o mundo
Não mudará a vida de ninguém
Mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
Ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?

Escuta
Não te demoro
É coisa pouca
Como a chuvinha que vem vindo devagar
São três, quatro palavras
Pouco mais
Palavras que te quero confiar
Para que não se extinga o seu lume
O seu lume breve
Palavras que muito amei
Que talvez ame ainda
Elas são a casa,
O sal da língua.

Fonte: transcrito da abertura do documentário Além-Mar, GNT, 1999.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Acadêmico (02)

TERMINOLOGIA E ENSINO

Ao dar aula no ensino fundamental e médio, o professor se depara com muitos desafios, e o principal deles é o desafio de seu sonho. Por que dar aula – e logo de Língua Portuguesa? Dizem que temos vocação para sofredores. Pode ser. Na realidade do trabalho docente, entramos em sala para reencontrar nossas razões, cada um a seu jeito, assim como os alunos que olham para o professor e imaginam como será aquele convívio que durará dois semestres letivos, às vezes mais.

O que é uma aula de Língua Portuguesa? Basicamente deveria ser um prolongamento do que se passa no mundo real, pois a língua que usamos é o nosso chão, somatopsicopneumático... Com a diferença de que o fato de ser uma disciplina integrante do currículo escolar a torna, naquele ambiente, muito mais propícia à autorreflexividade do que no espaço cotidiano extraclasse.

Pensar a língua portuguesa para se pensar em língua portuguesa, transitiva e intransitivamente, nas perífrases e nas paráfrases, nos paradoxos da vida. Onde está a língua que o professor apresenta nas suas aulas? De onde vem o que vai mostrar para o aluno? Vem de uma lista, de uma tabela, de um glossário, de um receituário? Ou vem do jornal, da televisão, do futebol, do cinema, dos bares, da música e da literatura? Vem do palavrão e do elogio? Da declaração de amor ou da declaração de renda? Ó mulher rendeira essa língua portuguesa! Por que só ensinar a fazer renda? Bom mesmo é namorar.

Todo o prazer do estudo da Língua Portuguesa faz parte do passado de cada professor de Língua Portuguesa. Não imagino que alguém escolheu ser professor dessa disciplina sem gostar dela. O que houve com a vocação que levou cada professor de Língua Portuguesa a ser (sê-lo – vá lá!)? O tempo foi calando o seu prazer? Programas engessados, salários indignos, condições precárias, superlotação, desprestígio... Sua Pasárgada da sala de aula ficou sem a aventura da existência...

Estudar a língua portuguesa com os alunos não dói. Faz pensar – exercício que precisa de treinamento, hábito, vontade... Pensar metalinguisticamente, porque a descoberta do entendimento das coisas da língua é alimento do espírito, é inspiração para outras reflexões e descobertas, é abertura para dar e receber novas informações. Esse estudo muito bem podia ficar assim mesmo: cada dia um texto, uma história, uma notícia, uma data festiva ou triste, uma visita. Tudo nos serve de desculpa para falar da língua. A propaganda diz que aquela cerveja desce redondo? Serve. O gol do Flamengo foi um golaço? Serve. O nome do filme é “A Ordem da Fênix”? Pode trazer que serve. Quem está na chuva é pra se molhar? Serve. E se for pra se queimar, como dizia o semifilósofo Vicente Matheus? Também serve. Sei cantar o hino do Colégio? O meu colégio não tem hino? Vamos fazer um hino pro nosso Colégio, ora! É época de Vestibular ou de ENEM e temos um formulário pra preencher? Vamos a ele.

Está tudo em português, mas, mesmo que não estivesse (porque o shopping center, o e-mail e a pizza apareceram diante de nós para se aportuguesarem), não faria mal nenhum. Cada um de nossos alunos tem o que dizer sobre todas essas coisas, pois fazem parte de suas vidas corinthianas, salgueirenses, agrícolas ou litorâneas. Um comentário aqui, um encaminhamento ali, vamos indo pelas beiradas em busca da confraternização linguístico-gramatical, sem traumas nem rancores.

Tudo isso é gramática pura, em funcionamento. E tudo tem nome, porque afinal de contas se os alunos têm nome, se o professor tem nome e a Escola tem nome, porque o coitado do artigo definido só vai se chamar “azinho” e o acento circunflexo “chapeuzinho”? Mas não é preciso uma nomenclatura gramatical sofisticada. Só se pede que ela seja apenas uma. Como o ser humano, incompleta, imperfeita, carecendo de retoques e de carinhos – e é só um instrumento.

O maior trabalho é pegar os retalhos todos tratados em tantas aulas e fazer uma bela colcha, um painel bonito e expressivo que se confirma na hora em que o aluno lê um texto (e gosta de ver que sabe ler), na hora em que o aluno escreve um texto (e gosta de ler o que escreveu). E até na hora em que ele faz uma prova, dessas bonitonas que o Governo aplica para dizer que o mérito é dele (mas só quando a coisa melhora). Desculpe! O mérito é da aula que o professor decidiu como ministrar.

A Nomenclatura Gramatical Brasileira feita em 1959 completa cinquenta anos. Em Portugal, onde havia uma nomenclatura oficial nascida em 1967, já se fez outra, rebatizada, pomposa, com bibliografia em francês, inglês e espanhol. E o Brasil? Vamos continuar convivendo com uma neoparafernália de terminologias? Qual a parte que nos cabe nessa Torre de Babel?

Penso nas pessoas, na língua, na gramática, nos nomes – tijolo com tijolo, pau, pedra... caminho.

Fonte: Prefácio de "Nomenclatura Gramatical Brasileira: cinquenta anos depois": Ed. Parábola, 2009.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Acadêmico (01)

O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO ADVERTE: NÃO ESTUDAR SINTAXE FAZ MAL AO TEXTO, de CCH

O estudo da análise sintática é um dos pontos fundamentais na formação de quem se pretende um usuário competente de sua língua. Duas das habilidades principais de uma pessoa culta repousam nas atividades de ler e de escrever, ações que podem caracterizar não só nossas carreiras profissionais, mas também nossa vida como cidadãos.

Ler ou escrever um texto é muito mais do que apenas compreender ou organizar palavras em frases e parágrafos. É algo que envolve um amplo mecanismo a partir do qual o pensamento e as pretensões comunicativas do autor se apresentam para reflexão e avaliação do leitor. Como se constroem esses textos? Com palavras, locuções, termos e orações – elementos que mantêm entre si um relacionamento interno que precisa ser coerente e estar de acordo com as normas prestigiadas pela sociedade letrada. Mesmo quando se pratica intencionalmente algum desvio de linguagem, ele precisa receber uma espécie de carimbo de “permitido” pelo público leitor.

A análise sintática é a análise das relações. Na estrutura da oração, estudamos as relações que as palavras mantêm entre si na frase. Essas relações são binárias: sujeito & verbo; verbo & complemento; núcleo & adjunto... A tradicional prática de exercícios voltados para o reconhecimento da função sintática de um termo nem sempre garante o real objetivo de sua aplicação. Não se pode dizer qual é a função sintática de um termo se não se encontrar o outro termo com o qual ele se relaciona. Ou seja, não se pode reconhecer que existe um objeto direto sem apresentar a “prova” (o verbo transitivo direto); não se pode afirmar que determinado termo é o agente da passiva sem que seu “parceiro” sintático seja revelado (o verbo na voz passiva). E assim sucessivamente com todos os termos da oração, pois cada um deles só tem a classificação que tem porque possui uma relação com outro termo – e cada uma dessas relações é única, e por isso são dez os termos da oração.

A sintaxe tem duas parceiras especiais. Uma é a semântica, a ciência do significado. Afinal, o entendimento de uma frase depende da sua estrutura e das sutilezas que envolvem a construção do sentido. Outra é a estilística (a ciência da expressividade), pois compete ao autor da frase fazer as escolhas sobre como será sua organização, a partir do repertório que a língua lhe oferece.

Entretanto, para o estudo da sintaxe do português, há um pré-requisito. Sintaxe e morfologia são assuntos interligados. Ter um bom conhecimento acerca das classes de palavras é fundamental para entender a estrutura de uma oração e de um período. Lembremo-nos, por exemplo, dos tempos de escola, quando estudávamos verbos, substantivos, adjetivos, advérbios – e suas significações, usos, flexões. Na construção de uma frase, o verbo é o elemento central; o substantivo é o núcleo de um termo; o adjetivo é o elemento periférico ou qualificador de outro; o advérbio, um determinante sobretudo dos verbos. Com isso, queremos enfatizar que o conteúdo aprendido nos estudos de morfologia precisa estar sedimentado quando se pretende estudar sintaxe.

Outro ponto muito importante diz respeito aos graus de complexidade e de expressividade de um texto, que se medem a partir de vários parâmetros. Um deles repousa certamente na observação da estrutura sintática de seus períodos e parágrafos. Por isso, o estudo da sintaxe é um dos caminhos para desvendar os mecanismos composicionais escolhidos pelo redator de um texto, sendo a nomenclatura e a fixação das regras básicas do relacionamento sintático apenas estratégias didáticas indispensáveis – embora não sejam o motivo principal do estudo.

Um texto coeso e coerente se organiza a partir de princípios lógicos, entre os quais se incluem os mecanismos relacionais, que partem de uma “relação-micro” como a que existe entre o núcleo de um termo e seu adjunto adnominal, passam por uma “relação-midi”, como a que nos mostra que uma oração é principal porque outra é sua subordinada, e se encerram numa “relação-macro”, que confirma por exemplo que uma redação escolar ou uma coluna de jornal teve começo, meio e fim – o que só acontecerá de fato se tiverem sido seguidas as regras elementares de adição, oposição, reiteração, substituição e conclusão, entre tantas outras regras que se baseiam em ampliações dos mecanismos primários expressos pelos conectivos, conjunções, pronomes relativos, pessoais...

Nesse caminho do “mundo-micro”, feito com o estudo geral da estrutura da oração, para o “mundo-macro”, estuda-se a estrutura do período (o “mundo-midi”), relembrando que a solidez de conhecimentos do “mundo-micro” é o novo pré-requisito. O domínio sobre o relacionamento que as orações mantêm entre si no enunciado será, então, o penúltimo estágio na busca pela posse do texto, o “mundo-macro”. Nele, tudo se repetirá em tamanho, forma e modelos maiores – mas nada muito diferente do que se tiver estudado desde as pequenas lições que nos ensinaram como se reconhece e se usa um verbo, um substantivo...

Afinal, um texto deve ter uma adequação gramatical compatível com as pretensões e intuitos de seu autor, que – se assim julgar pertinente – procurará atingir o nível de exigência da linguagem padrão praticada por escrito pela comunidade culta em se insere.

Fonte: Sintaxe: estudos descritivos da frase ao texto [com adaptações]: Ed. Campus, 2008.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Poesia (01)

LÍNGUA-MAR, de Adriano Espínola

A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós,
No teu sal, singra errante a minha voz.

Fonte: Beira-Sol, São Paulo: TopBooks, 2001

terça-feira, 24 de março de 2009

Crônica (01)

DIA DE ESTREIA, de CCH

Em meu trabalho de professor de Língua Portuguesa já tive turmas de todos os tipos. Uma vez, porém, ao assumir aulas num curso de Jornalismo da UERJ, resolvi propor aos alunos uma tarefa que os motivasse de modo especial.

Era mais ou menos assim. Suponha que você foi convidado para assinar uma coluna numa revista semanal de informação, opinando sobre os temas relevantes da semana. Para inaugurá-la, você deverá redigir um texto com o título "Dia de Estreia".
Os resultados foram muito bons, tanto do ponto de vista de qualidade textual e jornalística quanto pela receptividade dos alunos. Criatividade, originalidade e boa expressão linguística foram a tônica nas "colunas" daqueles jovens que, hoje, com certeza, já devem estar muito bem encaminhados na carreira.

O professor agora vira aluno e se vê repetindo a tarefa. A diferença é que o veículo é outro e estou dispensado – mas não proibido – de comentar os assuntos mais "quentes" do noticiário recente.

É certo também que meu ofício de professor de Língua Portuguesa dá a esta seção uma certa marca de responsabilidade didática ou pedagógica, mas quero combinar uma coisa com os leitores, em especial num "Dia de Estreia". Reconheço que o compromisso existe e será por mim observado.

Só que não tenho nenhuma pretensão doutrinária. Nossa conversa não será a de um consultório, não darei receitas nem ditarei regras. Se Vila Isabel é um berço do samba, imagino que a coluna do blogue deste vilisabelense pode ser vista como uma "Conversa de Botequim" por escrito. Neste bar, os fregueses gostam de refletir sobre a língua portuguesa, sobre os fatos e usos desta língua companheira.

Opinar... nada mais do que isso. Lembrar, por exemplo, que falar e escrever são práticas de características bem diversas e que as pessoas se expressam de modos variados conforme as situações e contextos em que se encontram. Aliás, não temos apenas uma língua falada, como não existe apenas uma língua escrita.

Reparem, por exemplo, como há diferenças na língua oral usada nas entrevistas da televisão. Ela varia de acordo com o perfil do programa, do entrevistador ou do canal. Bóris Casoy, Jô Soares, Serginho Groisman ou João Gordo? Qual a língua falada que combina mais com você? É ela a única forma de comunicação oral que você pratica?

Somos multilíngues em português brasileiro. E, de vez em quando, ainda precisamos ser poliglotas também na lusofonia. Afinal, uma nação de mais de 170 milhões de habitantes tem muito a fazer no cenário das comunidades de língua portuguesa, não?

Fiquem bem!

Fonte: publicado no Jornal de Vila Isabel (n. 320), em setembro de 2003.