Manuel Bandeira (1886-1968), em 1933, escreveu o “Poema do Beco”, que dizia concisamente em dois versos:
Que importa a paisagem, a Glória, a
baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
– O que eu vejo é o beco.
O pobre
“beco” onde Bandeira morava, na rua Moraes Vale, perto da Lapa, no Rio de
Janeiro, não deixa de ser uma rua
estreita e curta, por vezes sem saída, uma ruela, como dizem os dicionários. O beco é uma ponta do poema; a
outra ponta é a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte: ruela versus horizonte. Mas o poeta diz que
aquela amplidão não lhe importa, pois o que ele vê é o beco.
A “linha
do horizonte” é o antônimo do “beco” na pertinência ou na impertinência? Em
ambas? O poeta vê o beco porque o enxerga, avista, divisa? Ou porque o
contempla, reconhece, analisa? Cabe discutir as escolhas sobre o verbo ou mesmo
juntar esses significados diante da frase seca do segundo verso. O contraste
fica resolvido na expressão “que importa” que inicia o poema, mas sabemos que o
beco não é, a princípio, metonímia de nada (o poeta morava mesmo num beco). Não
precisava ser... se não assumisse no texto o lugar de “meu mundo”, “meu
habitat”, diante da grandeza da outra ponta, nada menos do que a “linha do
horizonte”.
Manuel
Bandeira, nove anos depois do “Poema do Beco”, resolveu retornar a ele e
escreveu a “Última Canção do Beco”, agora com 49 versos.
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristezas.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui.
Lapa – Lapa do Desterro –
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
– Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
Vão demolir a casa do beco (e aqui o sentido é literal), mas
seu quarto (agora metonimicamente como “as lembranças do quarto”) vai
permanecer “na eternidade, com seus livros, seus quadros”. O quarto vai ficar
intacto, suspenso no ar.
A sequência de estrofes enumera características que
entremeiam a subjetividade do eu-lírico e a descrição de pessoas e figuras,
imagens e experiências. Numa delas, fala-se das paixões; noutra, das mulheres;
adiante, da Lapa; a penúltima, de Nossa Senhora do Carmo; a última, do seu amor
pelo beco. Carregados de contradições, os versos reafirmam as mesmas elipses do
dístico. A outra ponta do beco, porém, mudou. Sumiu a paisagem da Glória, que
realmente nunca importara mesmo. Agora a outra ponta vem da Lapa, paisagem para
cima, diferente da paisagem para baixo ou para frente da Glória, do horizonte.
Já que o beco nasceu “à sombra de paredes conventuais”, ele é como a vida (“que
é santa”), assiste a todas as quedas, consola-as, é amado e saudado pela última
vez: “Adeus para nunca mais!”[1]
Fonte: Léxico e Semântica: estudos produtivos sobre palavra e significação, 1a. edição (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011).
[1]
Manuel Bandeira escreveria ainda dois poemas conjugados sob o título “Duas
Canções do Tempo do Beco”, a saber:”Primeira Canção do Beco” e “Segunda Canção
do Beco”. Integram o livro “Estrela da Tarde”, que reúne poesias (a maioria sem
data) escritas entre 1957 e 1966.
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