segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Poesia e Música (06)

COMPARANDO METADES (Oswaldo Montenegro & Ferreira Gullar)

TEXTO I
Metade (Oswaldo Montenegro)
gravado no lp “Trilhas”, de 1977.

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade...

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo...

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão...

Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço...

Que a arte nos aponte uma resposta

Mesmo que ela não saiba.

TEXTO II
Traduzir-se (Ferreira Gullar) - extraído de Na Vertigem do Dia, 1980
Fonte: Poesia Completa e Prosa, 2008, p. 293-4.
gravado por Fagner no lp “Traduzir-se”, de 1981.

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Fonte: Léxico e Semântica, 1a edição (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011).
Obs.: Na 2a. edição (Rio de Janeiro: GEN, 2018) há uma proposta de análise léxico-semântica desses dois textos,


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